Para Onde Vamos?
- camaraescurarevist
- 24 de nov. de 2020
- 9 min de leitura
Atualizado: 2 de dez. de 2020
Uma análise sobre os caminhos que o cinema brasileiro independente (e também o cinema no geral) está trilhando
Por Diego Goes
Ao ganhar seis prêmios este ano da Academia Brasileira de Cinema pelo seu filme Bacurau, Kleber Mendonça Filho publicou uma foto no Instagram e lançou a pergunta: “o cinema brasileiro terá o que premiar ano que vem? E não estou falando da pandemia”. O coronavírus fez o mundo diminuir seu passo por vários meses e afetou o universo do cinema de uma maneira jamais vista: pela primeira vez, o Brasil registrou zero faturamento em bilheterias na história. O que Kleber questiona não é se teremos filmes de qualidade para serem premiados, mas sim se haverá filmes. Ponto. Além da situação viral, temos que lidar com outros problemas.

Um deles é a dificuldade que o presidente atual tem de lidar com a liberdade artística e cultural que o Brasil conquistou ao longo dos últimos anos. Ele já declarou que “se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine”. Já sugeriu que “A gente não vai perseguir ninguém, mas o Brasil mudou. Com dinheiro público não veremos mais certo tipo de obra por aí. Isso não é censura, isso é preservar os valores cristãos” Destaco estas duas declarações porque foram referentes ao audiovisual, mas os ataques não ficam restritos a esta arte. Se dependesse apenas do presidente, o cinema brasileiro perderia a diversidade e seria direcionado prioritariamente ao público que se identifica com os valores ditos cristãos.
Um dos motivos para essa diversidade, por sinal, é o aumento das possibilidades para se financiar um filme. Se há algumas décadas atrás era necessário ter bons contatos e um bom dinheiro para seguir carreira no cinema, hoje em dia a tecnologia ajuda bastante: a começar pela captação de recursos (editais online e sites de crowdfunding), passando pelo ato de filmar (o que antes era película agora é digital), até chegar à distribuição e exibição (das salas de cinema para as salas de casa com a internet banda larga). Quem antes não tinha voz, agora tem mais chances de ver sua história assistida por várias pessoas.
Se as políticas públicas em âmbito nacional correm risco enquanto o presidente atual continuar no poder, as estaduais, pelo menos, passam bem. Em alguns lugares (como São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e no Distrito Federal, por exemplo) existem iniciativas que fomentam o audiovisual local, estimulando a criação de empregos na área e ainda aquecendo a economia. Mas há alternativas para pessoas físicas sem tantas burocracias quanto aquelas encontradas em editais: para quem não quer guardar nota fiscal por anos e anos de tudo o que foi gasto no projeto para prestar contas depois, basta escolher algum dos sites de financiamento coletivo disponíveis. Há vantagens e desvantagens nesses modelos de captação de recursos, tudo depende do tamanho do projeto e de quanto é necessário para produzi-lo. Por enquanto, os prefeitos e governadores sabem da importância que a área cultural tem para a população. Se isso permanecerá no futuro é incerto - vide o que aconteceu na mudança da presidência na última eleição.
Mas ao falarmos do amanhã, não podemos deixar de lado o hoje: a pandemia. As perdas humanas são irreparáveis, o desemprego subiu, a economia esfriou e ninguém tem como prever como o mundo será daqui pra frente. Não sabemos ainda como o vírus vai se comportar nos próximos anos. A COVID-19 pode se tornar uma doença sazonal - com os casos aumentando no inverno e diminuindo no verão. Há chance de que, após a criação da vacina, seja necessário tomá-la anualmente - como a da gripe comum. E um dos maiores enigmas atuais é como ficará/ viverá a arte daqui pra frente. Alguns eventos artísticos envolvem aglomerações, como peças de teatro, shows, exposições e cinemas, por exemplo. Estes últimos voltaram à ativa com certas limitações, como receber no máximo 60% do público. Mas por quanto tempo as salas vão conseguir se manter com uma frequência de público limitada? Na Europa onde o lockdown aconteceu no início do ano, alguns países estão planejando voltar à quarentena agora em novembro, já que a temperatura está abaixando e os casos voltaram a subir. Acontecerá o mesmo aqui também no inverno de 2021 caso não exista ainda a vacina?
A lei Nº 14.017/2020 que foi aprovada nesse período de emergência serve como respiro para quem vive de arte - pelo menos enquanto se mantiver o estado de calamidade pública. Conhecida como Lei Aldir Blanc, uma homenagem ao artista que faleceu de COVID-19 em maio, abrange desde fornecer um auxílio aos trabalhadores culturais até a oferecer subsídios para manutenção de espaços artísticos (o que inclui cineclubes e produtoras audiovisuais). Outro benefício da lei é a criação de editais para projetos culturais, incluindo para curtas-metragens.
Entretanto, se juntarmos as atitudes presidenciais de desmonte com a data incerta do que chamaremos de pós-pandemia, o futuro não é nada animador. Não sabemos quando as salas de cinemas voltarão ao que era considerado normal. E isso não é um problema apenas para os blockbusters, com sua ocupação de milhares de salas e filmes que conseguem entrar no funil do circuito de exibição: estes podem vender os direitos para algum streaming (como Alice Junior, um filme brasileiro com orçamento médio, que foi exibido em algumas salas e atualmente está no catálogo da Netflix) ou mesmo criarem um streaming para chamarem de seu (como aconteceu com Mulan na Disney+). É um problema principalmente para os diretores e diretoras de longas independentes que aproveitavam as salas cheias dos festivais para mostrarem suas obras, fazer networking e, quem sabe, garantir exibição e distribuição no circuito depois. Em relação aos curtas independentes, então, a situação fica ainda mais complicada: como não existe um circuito oficial de exibição como acontece com os longas, os curtas-metragens precisam dos festivais para serem vistos, premiados e, com o dinheiro ganho, o diretor ou diretora investirem no filme seguinte, por exemplo. Há inclusive alguns festivais que oferecem empréstimos de equipamentos, em parcerias com locadoras, para a realização de projetos futuros dos ganhadores. Mas, para isso tudo acontecer, as salas de cinemas precisariam estar abertas com sua capacidade máxima, sem perigo de alguém ser infectado pelo coronavírus. Teremos o que premiar no ano que vem?
A adaptação feita por algumas mostras em 2020 de disponibilizar online os filmes é vista com amor e ódio em medidas iguais. De um lado, algumas pessoas enaltecem a democratização e distribuição a todo o Brasil de um conteúdo que seria ofertado apenas a poucos (como é o caso da 44ª Mostra Internacional de Cinema) a um valor mínimo (esta edição está cobrando R$ 6,00 cada filme, em qualquer dia da semana. Em comparação à edição do ano passado, o ingresso da inteira custava R$ 24,00 às sextas, sábados e domingos). Do outro lado, muitos sentem falta da experiência de ver o filme em uma tela de cinema no escuro; de discutir com os amigos o que pensam sobre o que acabaram de assistir, naquelas aglomerações inevitáveis na porta da sala ao fim da sessão; das surpresas de entrar em uma sessão sem saber muito sobre o que irá ver e debater com o diretor após a exibição. Estamos a meses de distância dessas experiências novamente? Ou a anos?
Será que esse é o futuro dos festivais? Será que alguma mostra vai continuar online (realizando as duas versões, presencial e virtual) para aumentar e diversificar o público? É evidente que, no primeiro momento que puder voltar aos velhos tempos de aglomerações, muitas das mostras e encontros de cinema voltarão a ser in loco. Mas até lá, aproveitando a situação em que vivemos, fica a pergunta: um filme que foi feito para ser visto na tela grande mas que, por força maior, você só teve como assistir a ele no computador (ou no celular, ou no tablet, ou na tevê) é cinema? Neste período que ficamos sem ir às salas de cinema, ficamos sem cinema? A entidade cinema deixou de existir por alguns meses? Gaudreault e Marion vão além e questionam:
"Quando assisto a um filme na tevê, não há confusão possível, não estou no cinema. Mas o filme a que assisto é cinema? Um filme que passa num leitor de DVD não tem nada a ver com a tevê, mas, mesmo assim, é numa tela de tevê que passa. Aí também, nenhuma confusão possível, não estou diante de um programa de tevê. Mas aquele filme em DVD, a que assisto na tela de minha tevê, é cinema? Se é, o que pensar do mesmo filme assistido em sala? Um filme assistido em sala é ‘mais’ cinema que o mesmo filme em DVD numa tela de tevê? A transmissão ao vivo de uma ópera na tevê é tevê. Mas a transmissão ao vivo de uma ópera numa sala de cinema é cinema? Ou seria tevê? Um filme feito com um celular que passaria na tevê é cinema ou é televisão? Vamos adiante: um filme que não está em filme (em película, queremos dizer) ainda é um filme?"
A própria definição do que é o cinema - não a mídia, mas sim o ponto comercial que chamamos de cinema - mudou ao longo do tempo. O crítico A.O. Scott comenta que nos últimos cento e tantos anos, esse programa na agenda chamado ‘ir ao cinema’ foi se transformando em formas de sair de casa e visitar, dependendo da época, um local diferente: no início, para assistir a um filme era preciso ir a um café; depois passou a ser frequentar amplos espaços com pé-direito alto e milhares de poltronas de veludo direcionadas a uma tela grande; teve a fase de drive-ins, cinemas de rua, multiplexes e em uma das versões mais recentes, comidinhas e drinks artesanais são entregues por um garçom a você em sua poltrona confortável e levemente inclinada. Dizer “vou ao cinema” pode ter diferentes referenciais imagéticos a quem ouve esta frase: tudo depende do ano em que este diálogo aconteceu. Scott afirma que nenhuma arte se transformou tanto em tão pouco tempo de vida quanto o cinema. Neste caso, dá para ir além da forma espacial e abranger também, agora sim, a mídia.
Porque o cinema mudou bastante desde o seu nascimento. Silencioso, falado, preto e branco, cores, tamanho das janelas, filme em película, filme digital. Podemos incluir também as tecnologias que surgiram e influenciaram nossa vida: a tevê, o videocassete, o DVD, o Blu-ray, a internet, o streaming. E a dúvida surge a cada mudança: será o fim do cinema?
Não tem como colocar um ponto final nesses questionamentos propostos aqui e afirmar categoricamente que o cinema é isso ou aquilo, que os filmes independentes terão o apoio público ou privado para sempre ou nunca mais. A única certeza é a mudança em todos os sentidos e aspectos. Ninguém esperava por um ano como esse, mas estamos aí, quase no fim do mesmo. Por sinal, a pandemia pode ser vista no futuro como um momento catalisador na maneira de fazer e ver cinema. Alguns editais e festivais nesses meses de isolamento incentivaram a criação de filmes feitos em casa com alguns resultados muito bons como República (2020), de Grace Passô. No documentário Sportin' Life’ (2020), de Abel Ferrara, exibido na 44ª Mostra Internacional de Cinema (assistido na tevê da sala daqui de casa), uma repórter pergunta ao diretor se há esperança para o cinema independente atualmente. Ele responde que “tem câmeras por todo lado, o celular de todo mundo é uma câmera em potencial, a internet é uma vitrine. Então, eu acho que isso tudo é sensacional. É só uma questão de atitude dos diretores”.
A quarentena pode ser vista também apenas como o período que surgiu aquela espécie de movimento cinematográfico que durou alguns meses, com filmes caseiros falando sobre isolamento e solidão. Os filmes brasileiros no futuro podem se tornar mais independentes caso os recursos não venham de políticas públicas. Mas em casos de emergência, com os celulares e câmeras digitais acessíveis, basta uma ideia. Gaudreault e Marion sugerem que “o cinema não morre nunca, pois é feito de um ‘tecido’ de tal plasticidade que pode se reconstituir depois de ter sido esticado num sentido ou no outro”. A situação atual (política/ sanitária/ midiática) aparentemente estica para todos os lados o audiovisual brasileiro, forçando essa estrutura até quase chegar ao limite. Mas os cinemas brasileiro e mundial (e o nosso país como um todo) resistem apesar de tudo: não sabemos ainda para onde vamos, o caminho parece ser tortuoso e, por enquanto, o importante é se manter vivo e nos proteger ao máximo com o pouco que temos.
REFERÊNCIAS
GAUDREAULT, André, MARION, Philippe. O fim do cinema? Uma mídia em crise na era digital. Trad. Christian Pierre Kasper. Campinas, SP: Papirus, 2016.
HERCOG, Alex Pegna. Primeiro ano do governo Bolsonaro é marcado por ataques à cultura. Diplomatique Brasil, 19 de fev. de 2020. Disponível em < https://diplomatique.org.br/primeiro-ano-de-governo-bolsonaro-e-marcado-por-ataques-a-cultura/ > Acesso em: 3 de nov. de 2020.
LIMA, Juliana Domingos de. O futuro das salas de cinema no Brasil pós-pandemia. Nexo Jornal, 22 de abr. de 2020. Disponível em < https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/04/22/O-futuro-das-salas-de-cinema-no-Brasil-pós-pandemia > Acesso em: 3 de nov. de 2020.
MAZUI, Guilherme. ‘Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine’, diz Bolsonaro. G1, 19 de jul. de 2019. Disponível em < https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/19/se-nao-puder-ter-filtro-nos-extinguiremos-a-ancine-diz-bolsonaro.ghtml > Acesso em: 3 de nov. de 2020.
NÃO é censura, isso é preservar os valores cristãos, diz Bolsonaro sobre atividades culturais. HuffPost Brasil, 5 de out. de 2019. Disponível em < https://www.huffpostbrasil.com/entry/bolsonaro-censura-arte_br_5d990381e4b099389800b974 > Acesso em 3 de nov. de 2020.
SCOTT, A.O. How much do you really miss going to the movies? The New York Times, 16 de out. de 2020. Disponível em < https://www.nytimes.com/2020/10/16/movies/movie-theater-problems.html? > Acesso em: 3 de nov. de 2020.
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