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Brasil: Povo Criado Por Mulheres

  • camaraescurarevist
  • 14 de out. de 2021
  • 7 min de leitura

por Lucas Gonçalves Rangel

revisado por Mariana Peixoto


O Brasil vive uma epidemia de abandono paterno. Muitas pessoas nem sequer chegaram a conhecer seus progenitores paternos e os que tiveram essa sorte, muitas vezes se viram abandonados por estes durante algum período da vida. Mesmo nos casos em que isso não aconteceu, é muito difícil encontrar alguém que teve seu pai tão presente quanto a sua mãe, tanto no âmbito prático dos cuidados quanto no âmbito afetivo da criação.

Como veremos a seguir, esse é um problema enraizado na nossa cultura há pelo menos meio milênio, tempo suficiente para se tornar um problema estrutural: não pode ser resolvido no campo individual, pois sua perpetuação foi legitimada socialmente por tanto tempo que marcou o inconsciente coletivo. Por isso há de se pensar o abandono paterno tanto a partir de uma perspectiva pública como de uma perspectiva subjetiva.

É nesse sentido que “Minha Fortaleza: Os Filhos de Fulano” se faz tão urgente: o último filme da diretora Tatiana Lohmann documenta essa problemática de forma tão intimista que consegue fazer, até quem não sofreu com essa experiência, sentir um pouco dessa realidade.

Por muito tempo a história do Brasil foi contada de forma romantizada a partir do mito da democracia racial. Enraizado na obra de Gilberto Freyre, o mito defende que as relações entre escravizadores e escravizados se deram de forma cordial. Mas o resultado do Projeto DNA Brasil veio para desmentir a lenda contada em Casa Grande e Senzala. O povo brasileiro formou-se a partir do estupro sistémico de mulheres indígenas e negras por colonizadores. O projeto coletou dados de centenas de pessoas e chegou à conclusão de que 70% da herança materna teve origem em populações autóctones e africanas, já a herança paterna foi 75% europeia. Segundo uma das geneticistas responsáveis pela pesquisa, Tábita Hünemeier, em uma entrevista à Folha de São Paulo, esses números comprovam que os homens não europeus pouco deixaram descendentes por aqui. Mas se analisarmos essa realidade historicamente a situação fica ainda mais grave.


A união estável entre homens brancos e mulheres não brancas era vista, no Brasil Colônia, como reprovável pelo moralismo católico eurocêntrico da época. Apesar disso, aos homens portugueses era recomendado que engravidassem tanto mulheres indígenas, quanto afrodescendentes. Além disso, poucas mulheres vinham da metrópole para colônia e muitos dos homens, num período inicial, ficavam aqui por tempo determinado para enriquecerem até que voltassem para Portugal. Esses deixavam seus filhos desprovidos de qualquer direito ao reconhecimento da paternidade. Pouquíssimos eram os casos de filhos entre homens brancos e mulheres indígenas, ou em situação de escravidão, que eram reconhecidos pelo pai, visto que em sua maioria, esses eram casados oficialmente com mulheres de origem europeia. Essa política, incentivada pelo governo e pela igreja, tinha como objetivo o povoamento do território para dificultar as tentativas de domínio de nações concorrentes, como França e Espanha. Tudo isso fez com que durante a maior parte da nossa história fossemos um povo órfão de pai, um povo criado quase exclusivamente por mulheres. E não à toa, hoje, depois de tanta luta, o feminismo emerge no Brasil como a importante força transformadora da sociedade.

Se a família é a base da sociedade, as mulheres são seus alicerces. Cerca de 37,3% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres, segundo censo demográfico do IBGE realizado em 2010. Esse número representa um crescimento vertiginoso se comparado com o censo anterior: em 2000 eram 22,2%. Mesmo que as mulheres sempre tenham sido quase a totalidade na chefia de famílias monoparentais, esse aumento se deu principalmente devido ao fato de cada vez mais famílias biparentais serem chefiadas por elas. Nesses casos, houve um aumento de 19,5% para 46,4% entre o mesmo período citado anteriormente. Segundo a reportagem de O Globo, o conceito de chefia familiar para o IBGE é o reconhecimento pelos outros integrantes. Isso demonstra que as mudanças sociais experimentadas nas últimas décadas pelo Brasil têm colaborado para um maior equilíbrio no reconhecimento da importância feminina.


Apesar disso, ainda estamos muito longe de alcançar a almejada igualdade de gênero. Mesmo que as mulheres estejam lutando para superar os obstáculos estruturais impostos, a fim de alcançar uma posição justa nas relações de poder, essa desigualdade ainda habita o inconsciente de muitos, fazendo com que não raramente elas sejam idealizadas: vistas como se estivessem acima do plano da humanidade. Contudo, apesar das aparências, a idealização também é uma forma de dominação, que visa limitar as ações de uma pessoa a partir da imposição de um Ethos. E é esse um dos principais problemas abordados no longa documental “Minha Fortaleza: os Filhos de Fulano”, cujo cartaz emblemático mostra uma pele negra tatuada com a imagem da Virgem Maria. Como fica a situação da mulher que assume sozinha a responsabilidade por uma família após o abandono paterno?

É sobre esse panorama social que a diretora Tatiana Lohmann foi convidada, pela produtora Câmera Escura, para uma conversa virtual sobre seu filme, que se deu logo após sua exibição. Segundo contado por Tatiana, não foi ela que chegou até a história, mas o contrário, e esse primeiro encontro certamente vale ser retratado devido ao seu aspecto representativo em relação à obra: tudo começou durante as gravações de um documentário sobre a produção do Carandiru de Babenco. Fernando Macário, que então fazia um papel de figurante, pediu a Tatiana para que ela o acompanhasse durante uma sessão na qual tatuaria um retrato da mãe no peito, pois faria um videoclipe com essas imagens. A diretora, sem saber muito o porquê, topou, mas seu instinto para histórias não falhou. Ao chegar no tatuador viu que esse tinha o nome da mãe tatuado e começou a folhear seu portfólio, ficando curiosa, pois haviam muitas outras tatuagens de mães e muitas também de Nossa Senhora. Ao fim da sessão Tatiana havia percebido que aquilo ali não mais seria um videoclipe (que por sinal ainda não chegou a ser gravado), mas sim um filme. A partir de então Fernando Macário apresentou Tatiana Lohmann a Vila Flávia, quebrada da Zona Leste de São Paulo, que viria a ser o cenário de “Minha Fortaleza”.

O filme conta a história de três homens que possuem alguma relação com a questão do abandono paterno, tema que vai ser tratado durante a maior parte do tempo. Em um segundo plano, o filme mostra como se passa a vida das mulheres que tiveram que assumir o papel dos progenitores ausentes. Há uma grande discussão sobre a importância do pai e quanto às marcas que sua falta pode fazer, mas também sobre como essa falta pode ser ressignificada. As personagens femininas da história, por sua vez, são apresentadas claramente como as heroínas da história, porém devido a escolha narrativa elas são mostradas como mães, sem muitas outras facetas: mas isso se explica pelo fato de o documentário assumir o ponto de vista dos filhos, que é justamente a forma como a maioria de nós enxerga essas mulheres, ou seja, como mães. Essa escolha narrativa se mostra ainda mais acertada próximo ao final da obra, quando os protagonistas masculinos mostram um novo futuro possível, a partir da relação cultivada com seus filhos.

Esse ponto de vista comum, que relega o papel das mulheres a cuidadoras de famílias, se torna mais multifacetado no filme devido às nuances que diferenciam cada uma das três histórias. Um exemplo disso é a história de Barão, que, apesar de ser um dos protagonistas, acaba por ter menos visibilidade do que sua esposa: esteticista e dona do próprio negócio, ela cuida sozinha da família e ainda se vira para visitar, sempre que possível, seu marido, na cadeia há 8 anos. Fernando Macário, por outro lado, se encontra, pela primeira vez, com sua mãe biológica, que o abandonou após dar a luz e o conta um pouco da própria história, logo antes de vir a falecer. Já Negotinho faz um rap para Dona Vera, cujo nome virará o título do filme: Minha Fortaleza. A homenageada, que é a estrela do filme, é a responsável pelo desfecho. A última cena simboliza o momento que passou a poder desfrutar a vida: tomando um banho de mar na sua casa de praia, tranquila por ter conseguido criar seus filhos sozinha e ainda assim torná-los bons pais.

O filme desperta infinitas reflexões, principalmente por ter uma forma tão intimista: nos transportando assim para aquele ambiente e dessa forma produzindo diversas reações afetivas em quem assiste. É nítido o quanto os personagens se sentiram confortáveis enquanto filmados, resultado obtido não só pela relação que a diretora construiu com eles, mas também pela maneira com que foi realizado: com uma equipe bem reduzida. Além disso, segundo Tatiana Lohmann, outros cuidados contribuíram para tal efeito, como a decisão por evitar ao máximo o uso de equipamentos de iluminação.

Dentre tantas questões levantadas com o belíssimo “Minhas Fortaleza: os Filhos de Fulano” vale ressaltar a que é suscitada já no título da obra. Quais seriam as consequências de ser uma fortaleza? Essa questão é respondida no filme a partir de cenas que mostram toda a humanidade escondida atrás do manto da Santa que muitas vezes é imposto às mulheres, principalmente quando essas são mães que tiveram que assumir o papel dos pais ausentes. Como seria possível que homens, filhos de mulheres tão especiais como a Dona Vera, Dona Edith e a Dona Fátima, pudessem passar a vê-las para além da imagem modelo do feminino, que é o da Virgem Maria? Como seria possível que homens, filhos de mulheres tão especiais como a Dona Vera, Dona Edith e a Dona Fátima, pudessem passar a vê-las para além da imagem modelo do feminino, que é o da Virgem Maria? Como seria possível para uma pessoa que vivenciou o abandono paterno ressignificar o conceito do masculino, para além do estereótipo, que se confirmou (e marcou) em sua vida? Muitas dessas perguntas são respondidas quando vemos o amor que os protagonistas Fernando, Negotinho e Barão demonstram pelos seus filhos.

“Minha Fortaleza” é um filme com enorme potencial curativo. E mesmo para os que não possuem essa ferida, tão comum entre nós, brasileiros, é capaz de abrir os olhos para essa problemática social tão grave: homens também são pais e mães também são mulheres. Por fim, fica um afetuoso agradecimento a toda equipe responsável. Aos personagens que abriram as portas de suas casas e de seus corações. E a grande diretora Tatiana Lohmann, por ter dedicado um pouco do seu tempo para conversar conosco, alunos do Audiovisual, e principalmente por ter doado o seu olhar delicado a um tema tão caro ao nosso futuro.


Fontes:



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