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Glauber Rocha: fome, sonho e realidade

  • camaraescurarevist
  • 14 de out. de 2021
  • 4 min de leitura

por Marcela van Riemsdijk

revisado por Mariana Peixoto


Na sociedade desigual, o faminto tem duas opções: conformar-se ao seu papel de recebedor da caridade do rico opressor, porque o rico opressor precisa de alguém que faça esse papel; porque ele precisa de alguém que receba sua caridade e sua filantropia para acalmar sua consciência, para redimi-lo diante do Deus no qual ele acredita. Ou revoltar-se contra o absurdo da própria pobreza, da própria fome, num mundo que tem tanto, em que tantos têm muito (muito além do que precisam) e outros passam uma vida inteira, gerações após gerações, se debatendo contra a fome, gastando todas as suas energias para conseguir comer e sobreviver mais um dia, sem jamais alcançar a possibilidade de evolução, ou de melhoria de sua realidade, ou daquela realização pessoal, emocional, intelectual prometidas pela racionalidade burguesa.

O Cinema Novo – assim como a Bossa Nova – surge no Brasil no final da curta era desenvolvimentista trazida pelo governo de Juscelino Kubitschek (1950-1955). Mas ao contrário do movimento musical, que cantava o amor e as belezas naturais do Rio de Janeiro, a partir de uma perspectiva claramente burguesa, os filmes – principalmente os de Glauber Rocha – mostram a realidade crua da miséria, da fome e da opressão, que era – como continua sendo – a realidade de uma grande parte da população brasileira.

Glauber tenta explicar a lógica de seus filmes por meio de manifestos. Eztetyka da Fome é o primeiro e o mais conhecido. Foi escrito em 1965 – quando Glauber já tinha filmado Barravento (1961) e já era conhecido internacionalmente por causa de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) – e apresentado em Gênova, na Itália, no Seminário do Terceiro Mundo, dentro de um encontro sobre o cinema latino-americano, que incluía uma retrospectiva de filmes do Cinema Novo.

No contexto da “estética da fome”, a única saída real, autêntica, seria a da violência. A fome que se conforma e desempenha seu papel de aplacadora da má consciência burguesa é contraposta à fome que se radicaliza em revolta violenta e irreversível. Porque a violência explícita, assim como a imagem violenta e escancarada da própria fome, “feia e suja”, seria a única forma verdadeira de se apresentar ao opressor. Qualquer tentativa de “embelezamento” dessa realidade só serviria para torná-la mais um produto “exótico” ou “pitoresco” a ser consumido por intelectuais bem nutridos dos países ricos.

Seguindo essa ideia, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, Glauber Rocha conta a história de Manuel, vaqueiro que, depois de anos se conformando com a opressão de coronel Moraes, se rebela, matando-o. O filme segue Manuel enquanto ele foge, depois do crime, e busca formas de diminuir a dor da miséria, tanto na religião quanto na vingança, mostrando sem escrúpulos a violência do ambiente (a terra do sol) para com o miserável.

O segundo manifesto, Eztetyka do Sonho, foi escrito seis anos depois do primeiro – e também depois da experiência de filmes como Terra em Transe, Câncer, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro – e apresentado numa palestra para alunos da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, em 1971. Nessa altura, ele já tinha feito também os chamados “filmes do exílio”, realizados depois que saiu do Brasil (por causa da ditadura), em 1970: O Leão de Sete Cabeças e Cabezas Cortadas.

No contexto da “estética do sonho”, Glauber Rocha faz a autocrítica de sua visão anterior, afirmando que o misticismo é a única linguagem que transcende ao esquema racional da opressão. Para ele, as classes médias e a burguesia latino-americanas são caricaturas decadentes das sociedades colonizadoras. Por isso, as raízes negras e índias dos povos latino-americanos seriam a única força realmente desenvolvida do continente: “Os deuses afro-índios negarão a mística colonizadora do catolicismo, que é a feitiçaria da repressão e da redenção moral dos ricos”. Diante da miséria insuportável, a crença e o pensamento místico – sempre desprezados pela intelectualidade – são resgatados e apresentados como possível solução.

A obra de Jorge Luís Borges, autor argentino que é referência na literatura classificada como “realismo fantástico”, é mencionada por Glauber como portadora dessa “estética do sonho”, uma arte revolucionária e mágica, capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto, que ele não suporte mais viver na realidade absurda da fome sem remédio. “O sonho é o único direito que não se pode proibir”, afirma Glauber. Em Borges, o sonho e a realidade são uma coisa só. Suas personagens não são necessariamente desvalidas ou revolucionárias, mas podem encontrar caminhos inusitados para se vingar ou se rebelar contra a opressão, como Emma Zunz, que planeja uma vingança elaborada contra o homem que provocou o exílio e a morte de seu pai.

Refletindo sobre os textos e sobre a obra do cineasta, é possível dizer que, no Brasil, essa miséria se transformou na miséria da classe média e média baixa, que ao longo dos últimos trinta anos se agarrou à ideia da possibilidade de ascensão social por meio do trabalho. Ao deixar de ser pobre, também não seria mais oprimida. Contudo, essa racionalização da opressão distancia essa parte da população do misticismo e do senso de comunidade daqueles considerados “marginais” e “miseráveis”. Ao mesmo tempo, não consegue livrá-la totalmente da opressão, porque faz com que ela se agarre à racionalidade de conceitos como a dignidade e a necessidade do trabalho, não apenas para a sobrevivência econômica, mas também para a “realização pessoal”.

A “estética do sonho” defende que a única forma de se livrar dessa opressão seria se entregar ao misticismo e à fantasia, ou à religião e ao entretenimento, que oferecem, mesmo que por um curto período, um escape, um momento em que a consciência não esfrega na sua própria cara a dura realidade da vida – que agora é também solitária, além de oprimida.

Mas, no Brasil atual, o misticismo religioso também acabou se transformando numa forma de manutenção da opressão, por meio das promessas vazias e engodos trazidos pela “teologia da prosperidade”, de origem americana e defendida pelas igrejas neopentecostais.

Por outro lado, a arte misturou-se irremediavelmente ao entretenimento. E essa mistura também tem várias faces. Por meio da internet, arte e entretenimento podem estar ao alcance de todo mundo. E todo mundo também poderia produzir e publicar sua arte ou seu entretenimento usando a internet. Dessa forma, a arte – perpassando a multiplicidade de produções trazidas pela televisão por assinatura e pelos serviços de streaming, ocupando as redes sociais e outros espaços da internet – pode também ganhar novas possibilidades de ser revolucionária e despertar sensos de pertencimento e transformação social.

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