Cinema Indígena: passado e futuro
- camaraescurarevist
- 14 de out. de 2021
- 6 min de leitura
por Catarina Bijotti
revisado por Mariana Peixoto
Aconteceu no dia 27 de abril a palestra na Semana Rec sobre Cinema Indígena. O evento contou com a presença do cineasta, ex-professor da Anhembi e atual pesquisador do núcleo Diversitas (FFLCH/USP), Thomaz Pedro. Inicialmente também teríamos a presença de Takumã Kuikuro, cineasta indígena do Alto Xingu e diretor do filme exibido, mas infelizmente Takumã teve demandas de última hora na aldeia por conta de novos casos de Covid-19 registrados por lá e não pôde comparecer. O diretor deixou então um vídeo gravado falando um pouco sobre sua iniciativa, que foi exibido para os quase 160 alunos que participaram do evento.
Antes de exibir o filme “As Hiper Mulheres” (Dir. Takumã Kuikuro, Leonardo Sette e Carlos Fausto. 2011), Thomaz Pedro fez uma breve introdução sobre o audiovisual indígena e sobre o tema do filme. O cineasta começou a fazer trabalhos no Alto Xingu por volta de 2015, mas a presença do audiovisual no local se iniciou bem antes.
Vídeo nas Aldeias
O projeto “Vídeo nas Aldeias” foi criado em 1986 como um experimento pelo antropólogo Vincent Carelli. O objetivo do projeto de acordo com o seu site oficial é: “apoiar as lutas dos povos indígenas para fortalecer suas identidades e seus patrimônios territoriais e culturais, por meio de recursos audiovisuais e de uma produção compartilhada com os povos indígenas com os quais o VNA trabalha.”
Em 1987, Carelli lançou o primeiro documentário do projeto: “A festa da moça”, registrando costumes dos Nambiquara. Essa primeira filmagem mostrou dentro da própria aldeia o potencial que o audiovisual tem e sua prática foi expandida para outros territórios.
Em 1997 o Vídeo nas Aldeias realizou a primeira oficina de formação audiovisual na aldeia Xavante de Sangradouro, ponto de virada do projeto em que, agora, os próprios indígenas começariam a dominar as ferramentas audiovisuais para eles mesmos documentarem suas aldeias.
Foi em 2000, com a chegada de alguns antropólogos na aldeia Kuikuro, que Takumã começou a se envolver com o cinema. Nesse momento ele aprendeu a usar os equipamentos e decidiu aprender português para facilitar seu aprendizado. Lançou seu primeiro filme em 2002.
O Vídeo nas Aldeias é hoje um meio importantíssimo para a luta indígena. Durante a palestra, Thomaz citou uma ideia do ativista indígena Ailton Krenak: para ele, os indígenas precisam ter terras e telas. Ou seja, além da longuíssima luta por demarcação, também é importante que esses indígenas falem e sejam vistos na televisão, no cinema e na internet.
As Hiper Mulheres (2011)

Após essa introdução, Thomaz Pedro explicou um pouco sobre do que se trata o filme em questão. “As Hiper Mulheres” documenta o Janurikumalu, maior ritual dos Kuikuro que acompanha o canto e dança das mulheres da aldeia. A festa, entretanto, é composta por diversos cantos que quase todas as mulheres da aldeia não conhecem. Assim, elas treinam todos os cantos e danças até o dia do acontecimento.
As aldeias do Alto Xingu são, segundo Thomaz, muito festivas. Ao contrário da nossa ideia de festividade, suas festas são relacionadas à ideia de cura de doenças. Segundo os Kuikuro, as doenças são causadas pelos itsekes (que pode ser traduzido como “espíritos”), e para “expulsar” esses itsekes são realizadas as festas para a cura. É nesse contexto que é realizada a Janurikumalu. Preocupado com a doença da esposa, o marido pede que seu sobrinho realize a festa. A esposa doente é, inclusive, uma das únicas que sabe todos os cantos do Janurikumalu.
Em uma viagem imersiva de mais de uma hora, o filme segue a linha observativa para capturar os preparativos da festa. Seu ritmo é, como foi comentado durante a discussão sobre o filme, crescente e acompanha os preparativos. No começo apenas uma ou duas mulheres cantam, ao longo do filme mais e mais mulheres se juntam aos ensaios e, no fim, todas se juntam para a dança no Janurikumalu.
Mas é sobre registro e memória que quero falar aqui. Em um determinado momento no filme, uma mulher retira um gravador velho do meio de seus pertences e começa a escutar cantos que estavam gravados ali, evidenciando essa consciência da aldeia de gravar seus costumes. Essa ideia de usar diferentes meios para registrar sua cultura é a alma do projeto e do filme.
Em outra situação, enquanto ensina o canto para outras de sua aldeia, uma mulher se esquece por um momento da letra da música. Imediatamente ela diz: “Estou esquecendo. Acho que vou morrer em breve”. O comentário que parece ter fundo humorístico em um primeiro momento mas que logo chama a atenção quando olhado mais de perto. Esquecer é morrer.
Se não fosse o gravador, como aquela mulher lembraria dos cantos? Se não fosse o cinema, como Takumã mostraria a maior festa das mulheres do Alto Xingu para todo o Brasil (e às vezes até para o exterior)? O cinema é registro de tudo isso, mas é acima de tudo uma forma de expressão desses indígenas. Expressão artística que vêm sendo atacada e desencorajada nos últimos anos por conta de cortes e boicotes ao cinema brasileiro através do desmonte da Ancine, da propagação de fake news sobre o mercado audiovisual nacional e da lenta destruição da Cinemateca, que acolhe a memória do nosso cinema.
Lutar pela ocupação das telas é lutar para contar a própria história.
Takumã e a câmera
Depois de assistir ao filme, procurei mais informações sobre o diretor e seu trabalho. Me surpreendi quando encontrei uma reportagem do final de março de 2021 relatando o trabalho dos Kuikuro durante a pandemia.
Assim como alguns brasileiros, estou desde março de 2020 em casa acompanhando as notícias sobre a situação da pandemia no Brasil e sua tragédia dos últimos meses com recorde de casos e mortos pelo vírus.

Takumã Kuikuro. Imagem do People's Palace Projects.
Obviamente me surpreendi então quando li o subtítulo da reportagem do National Geographic Brasil: “Agora vacinados, os kuikuro não tiveram mortes por covid-19. O esforço de guerra foi registrado por Takumã Kuikuro.”
Em um vídeo narrado pelo cineasta, ele relata a estratégia da aldeia para se proteger da doença: fecharam-na para visitantes, lideranças fizeram reuniões para conscientizar a população sobre os cuidados que deveriam ter, construíram uma casa de isolamento para aqueles que vinham de fora, contrataram um médico temporário e distribuíram alimentos e itens de higiene. Tudo isso garantiu com que os kuikuro não tivessem nenhuma morte por covid-19.
Os esforços no começo da pandemia também foram documentados por Takumã no vídeo “Hiper doença”, que realizou por convite do Instituto Moreira Salles e foi lançado em julho do ano passado.
Além de enfrentar a pandemia, Tukumã também registrou fotos e vídeos dos incêndios florestais na Terra Indígena do Xingu, que aumentaram significativamente no ano passado. Os kuikuro montaram uma brigada de voluntários para combater o fogo.
As fotos e vídeos foram motivadas mais uma vez por essa necessidade de contar a história: “Eu tenho que entrar na ação para registrar. Eu documentei tudo para nossa história não ficar excluída durante a pandemia e mostrar na mídia. E para tentar trazer doações e salvar o povo”, disse Takumã em entrevista ao National Geographic Brasil.
Que a iniciativa de Takumã de se expressar através das câmeras continue por muito e muito tempo, e que ele ensine cada vez mais indígenas a se expressar. De qualquer forma possível.

Imagem feita por Takumã do incêndio no Xingu. Fonte: National Geographic Brasil
Como ajudar?
Uma questão que surgiu durante a conversa foi como conhecer mais, ajudar ou até mesmo participar do cinema indígena.
Reproduzindo aqui a fala de Thomaz, é possível conhecer (em condições normais sem coronavírus, evidentemente) as aldeias de São Paulo. Além disso, seguir e apoiar a APIB (Articulação dos povos indígenas do Brasil) nas redes sociais para ter ideia da luta e do que acontece diariamente nas aldeias por todo o território nacional, o que é ótimo para não propagar inverdades sobre a luta dos indígenas.
Sobre o Vídeo nas Aldeias, é possível assistir todos os filmes produzidos por eles no seu site, indicado no final desse texto. Lá também é possível fazer doações para a iniciativa continuar crescendo cada vez mais.
Fontes:
APIB. Disponível em: <https://apiboficial.org>. Acesso em: 27 abr. 2021.
CUNHA, Carolina. Combatendo a hiperdoença - como uma aldeia do Xingu passou ilesa pela pandemia. National Geographic Brasil, 22 mar. 2021. Disponível em: <https://www.nationalgeographicbrasil.com/video/tv/cineasta-indigena-takuma-kuikuro-registrou-como-seu-povo-evitou-mortes-por-covid-19>. Acesso em: 27 abr. 2021.
HIPER DOENÇA. Takumã Kuikuro. Instituto Moreira Salles, 15 jul. 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=roqdVH0pVIs>. Acesso em: 27 abr. 2021.
SALGADO, Daniel. Takumã Kuikuro, cineasta: “Queremos registrar nossa cultura”. O Globo, 13 nov. 2017. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/conte-algo-que-nao-sei/takuma-kuikuro-cineasta-queremos-registrar-nossa-cultura-22057009.> Acesso em: 27 abr. 2021.
VÍDEO NAS ALDEIAS. Disponível em: <http://videonasaldeias.org.br/loja/> e <http://www.videonasaldeias.org.br/2009/vna.php?p=1>. Acesso em: 27 abr. 2021.
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