Flores (não tão) Raras - o cinema lésbico nos últimos 10 anos
- camaraescurarevist
- 14 de out. de 2021
- 7 min de leitura
por Mariana Peixoto
revisado por Catarina Bijotti
Quem são os sujeitos do cinema brasileiro contemporâneo?

Amor Maldito (Adelia Sampaio, 1984). Fonte: Verberenas
Existe um movimento geral no cinema contemporâneo de questionar quem são suas personagens principais e, a partir disso, questionar como ele representa os sujeitos “marginais” da sociedade. Olhando para o Brasil dos anos 2010, é fácil encontrar tentativas dentro e fora do cinema mais comercial de capturar essas vozes. Por vezes essas tentativas afogam a voz "marginal" no clichê, e em algumas exceções essas vozes encontram o local para ser vista e ouvida de verdade.
Chamo de vozes marginais as que estão ganhando protagonismo no cinema: mulheres, pessoas negras, pessoas que moram em situação de extrema pobreza e pessoas LGBTQ+. Olhando para dentro desse último grupo, que se subdivide em muito mais grupos, enxergo filmes que fizeram trabalhos muito bonitos de dar voz aos homens (e não-binários) gays e pessoas transexuais. Mas as outras “letrinhas” ficam um pouco de lado nesse movimento.
Onde estão as mulheres (e não-binários) lésbicas no cinema? Em 1984, quando Adélia Sampaio (primeira diretora negra brasileira) dirigiu Amor Maldito, contando uma história com uma protagonista apaixonada por outra mulher, alguém pode ter imaginado que narrativas de mulheres que amam mulheres talvez ganhassem algum espaço no cinema nacional. Mas hoje sabemos que isso não aconteceu.
Então quem são, e como são representadas, as poucas lésbicas que o cinema brasileiro nos apresentou nos últimos dez anos, pensando nesse movimento de dar espaço às vozes apagadas? Neste texto analisamos alguns filmes e como as mulheres e não-bináries lésbicas são representadas no cinema ao longo da última década.
Flores Raras (Bruno Barreto, 2013)
O filme que dá nome à mostra. Escolhido justamente pela capacidade que o longa tem de resumir todo um imaginário de clichês das relações entre mulheres por meio de olhar que fetichiza essa união, tudo revestido pela alcunha do “baseado em fatos reais” que dá o selo final de que assim são as lésbicas, dentro e fora do cinema.
Feito com apoio da Globo Filmes, o longa é uma adaptação do livro Flores Raras e Banalíssimas, e conta a história do romance entre a poeta Elizabeth Bishop e a arquiteta Lota de Macedo.
Flores Raras não é um filme “ruim”, essa é a primeira afirmação que quero fazer. As duas observações que quero trazer sobre ele são justamente quanto aos clichês que o filme reproduz. Clichês narrativos e estéticos. Isso não faz do filme menos ou mais, apenas um filme feito com interesses comerciais, com uma temática “arriscada” para a sociedade conservadora onde ele foi produzido.

O primeiro clichê é da ordem do estético. Ele é um filme pouco inventivo, e não arrisca sair da estrutura habitual de como agenciar as imagens ao contar uma estória de romance. Isso pode ser um problema se pensarmos que existem especificidades numa relação amorosa e sexual entre mulheres que deixam de ser exploradas quando a câmera é dirigida por um olhar heteronormativo. Isso resulta numa câmera que acaba por fetichizar as personagens, o que nos leva ao nosso segundo clichê.
Leta é o “homem” da relação, enquanto Elisabeth é a “mulher”. É muito comum ouvirmos esse tipo de equivalência ao falarmos de relações homoafetivas, porque o mundo é heterocentrado. O filme de Bruno Barreto perpetua esse imaginário ao construir uma personagem estereotipicamente "machista”, e outra que ocupa o papel da esposa perfeita. A forma de se vestir também implica esses estereótipos. Mais uma vez, são consequências de lentes heteronormativas contando uma história sáfica.
O Uivo da Gaita (Bruno Safadi, 2013)
O silêncio como forma narrativa. O Uivo da Gaita é um filme absolutamente experimental, que brinca com a ausência quase completa de diálogos e um uso dos sons diegéticos para contar a história de uma mulher casada que se apaixona por outra mulher.

A relação entre as duas é intermediada pelo marido da primeira, numa tentativa de poliamor que acaba por não funcionar. É a mulher lésbica sendo retratada num lugar de fetiche, mais uma vez. Mas dessa vez ela é alvo do olhar fetichista de outra mulher, uma subversão curiosa.
O silêncio parece ser o lugar dessas mulheres. Caladas e quase nunca representadas. Parece até irônico pensar que são duas mulheres heterossexuais que silenciam as vozes de duas mulheres lésbicas (ou bissexuais) que poderiam estar em tela.
Como Esquecer (Malu de Martino, 2010)
Um filme onde o relacionamento entre duas mulheres não é o centro, e nem a maneira como a questão lésbica é abordada.
A protagonista sofre após o término de uma relação muito antiga, e pelo menos por três quartos do filme a lesbiandade existe dentro da personagem, sem precisar de uma relação para se expressar.

Esse é um dos longas (se não o único) que consegue escapar de muitos clichês apenas pela escolha de abordar uma mulher não pela ótica do relacionamento, e sim focando em sua subjetividade.
Muito do filme é contemplativo, com planos estáticos longos e monólogos extensos que refletem a turbulência depressiva que é a personagem após o término. Isso não muda quando ela conhece a primeira mulher com quem se relaciona após a separação, porque o filme não é sobre relacionamentos, e sim sobre Júlia.
Júlia, uma mulher lésbica, que sofre após o fim de um relacionemento, vive sua dor, e volta a sair com outras mulheres. O filme humaniza a figura da lésbica, dando-lhe um espaço para ser algo além de peça de um relacionamento.
À Beira do Planeta Mainha Soprou a Gente (Bruna Barros e Bruna Castro, 2020)
Até aqui falamos de longas-metragens feitos para um cinema comercial, e que se “arriscaram” a falar de um tema que parece tabu. Esse é um curta entre o documental e o experimental, que conta a história de duas lésbicas com suas mães.

Mais um filme que humaniza e dá espaço para que essas mulheres sejam alguém além de parte de um relacionamento. Incluindo aqui alguns elementos que até então não haviam aparecido: a família e o ato de “sair do armário”.
As mães existem apenas pela voz, pelas marcas que deixaram em suas filhas após a saída do armário e pela saudade. Elas existem como toda mãe existe dentro de uma filha lésbica. E o filme consegue mostrar a diferença que faz uma mãe que te aceita e te entende, e uma mãe que apenas se resigna e “atura” esse “traço” de quem você é.
Se em O Uivo da Gaita, o silêncio dava o tom, aqui é a voz que faz poesia e conversa o tempo todo. Conversas entre as namoradas, conversas por mensagens de voz com as mães que estão longe, conversas com o espectador, em forma de poesia quebrando a quarta parede.
Esteticamente falando, nada é igual aos filmes anteriores. Primeiro pelo formato, que é muito diferente. Mas existe também - e acho que isso é a diferença fundamental na forma de representar a lesbiandade que esse filme traz - uma maneira de filmar os corpos muito menos fetichista e mais afetiva.
Uma câmera que busca no corpo dessas mulheres o que não são os lugares-comuns. Busca no toque entre as mulheres algo além daquilo que interessa a um olhar fetichizado da relação homosexual. E mais importante, uma câmera que intercala sujeito e objeto - as duas “Brunas” que assinam a direção, são também as “atrizes”, quando uma está em frente às lentes, a outra está atrás - e isso é o que dá todo esse tom de afeto às imagens.
Aonde Vão os Pés (Débora Zannata, 2020)
Se falávamos de clichês, em Aonde vão os pés, os clichês que já estão tão imbuídos na nossa percepção criam uma virada do que se espera do filme.
A abertura quase confessional da diretora, com imagens da sua infância e adolescência como lésbica, adianta ao espectador que ao menos uma das duas garotas que aparecem jogando futebol são, também, lésbicas (clichê? Talvez).
Mas a quebra de expectativa é quando se torna perceptível que o romance não vai se desenrolar entre as duas jovens, e sim com uma das senhoras que frequenta um bar em que as meninas vão após o treino.

As sequências no bar vão aos poucos mostrando a aproximação da garota e da mulher, as primeiras insinuações de flerte entre as duas são tão sutis, que um olhar viciado no clichê pode deixar passar batido.
Quando as duas saem do bar e vão para a casa da mulher, é palpável a timidez da garota que parece estar se descobrindo ainda. A mulher não força nada, e existe uma naturalidade no toque entre elas: um respeito da mulher mais velha pelo processo de descoberta da menina.
Mas tudo é interrompido quando uma vizinha bate na porta. Tomada pelo medo, a garota foge pela janela e corre para longe dali, com medo de ser descoberta. Apesar de fugindo, a menina sorri. Um sorriso de quem se descobre aos poucos, mesmo com todos os preconceitos que a rodeiam.
Temporal (Maíra Campos, Michel Ramos, 2020)
O terceiro e último curta que exploramos nesse ensaio. Aqui a relação com a lesbiandade é apenas potência. É o desejo da voz que narra. Que sussurra nos ouvidos de quem assiste palavras de amor que seriam ditas a amada, se ela ali estivesse.

Temporal brinca com experimentações estéticas e poéticas. Com uma dimensão sensorial que instiga e dá o tom de um amor, que como diz a própria sinopse do filme, “é um estado de estar” - estar no sentido de presença, em oposição a potência daquele desejo por uma mulher que não está.
O filme apresenta o estatuto de um amor lésbico: um amor que é estado-potência-ato, um amor que se faz na ausência e na presença.
Imagens hápticas, e um desenho de som que seduz. Temporal é a representação daquilo que eu acredito ser a maneira de se representar uma relação para além do olhar heteronormativo. Todos os curtas aqui apresentados são, é neles que as experimentações fundam um olhar mais próximo e mais cuidados sobre o que é ser lésbica.
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