O Coringa sob a ótica da comunicação
- camaraescurarevist
- 14 de out. de 2021
- 4 min de leitura
por Lucas Rangel
revisado por Catarina Bijotti
Elizabeth Noelle-Neumann foi uma cientista política alemã envolvida com o regime nazista que viria mais tarde a ser conhecida pela publicação do seu livro “A espiral do silêncio – Opinião pública: Nosso tecido social”, em que teoriza como a manipulação midiática influencia comportamentos e opiniões de indivíduos por meio da criação de um falso consenso público. Segundo Neumann as pessoas tendem a querer evitar expressar publicamente opiniões contrárias às da maioria por medo de isolamento, fazendo com que intensifique o processo de uniformização dos pontos de vista. Esse processo fica ainda mais grave com o aumento do poder midiático, pois passa a existir a possibilidade do falseamento da opinião pública para além da simples manipulação da informação: basta mostrar que todo mundo parece pensar igual sobre um determinado assunto para que uma pessoa passe a compartilhar dessa opinião sem nenhuma exigência de comprovação da veracidade. Segundo a pensadora, a “opinião pública serve como instrumento de controle social e assegura a coesão.” (NOELLE-NEUMANN; PETERSON, 2004, p.350).
No filme Coringa (Todd Phillips, 2019), podemos notar em vários momentos a presença marcante da mídia, seja na TV ou nos jornais impressos, e como isso parece influenciar tanto o protagonista quanto o seu entorno. Num primeiro momento, Gothan aparece como uma cidade sofrendo com fortes problemas estruturais e cuja população está consciente da luta de classes, porém, é só com a aumento da violência culminando do assassinato do Murray (e as respectivas capas de jornais) que a as pessoas começam a ir para as ruas protestar. Como explicitado por Neumann, “a espiral do silêncio tende a existir em situações em que grande parte da mídia de massa defende claramente um único ponto de vista.” (NOELLE-NEUMANN; PETERSON, 2004, p. 351).
O protagonista, por outro lado, parece alheio a essa lógica chamada de Espiral do Silêncio. Em vários momentos o Coringa aparenta não se importar com a opinião pública e nem com a exclusão social, podendo assim ser considerado como “duro de espírito” segundo a teoria de Neumann. Um exemplo disso é a cena em que é entrevistado ao vivo e aproveita da situação para fazer um desabafo existencial/social apesar do desconforto da plateia. Isso pois durante todo o filme é construída uma relação entre o protagonista e os meios de informação que intensifica o seu sonho de se tornar um comediante famoso (como quando imita atores), algo talvez fruto do transtorno de personalidade narcisista de sua mãe, que sonhava em enriquecer. Porém ele não consegue e em cada tentativa sofre com a violência social, o que aumenta sua raiva e culmina em um assassinato. O filme mostra que assim como ele, outras pessoas foram sendo excluídas nesse processo de espiral do silêncio até que o número de pessoas à margem da sociedade era grande o suficiente para exigir mudanças.
Esse tipo de violência pode ser observado na segunda década do século XXI, quando surgiram vários casos de ataques por pessoas fantasiadas de palhaços ao redor do mundo, mas, devido a cobertura midiática massiva, o terror foi intensificado de forma desproporcional, o que pode ter se dado por um fenômeno conhecido como Agenda Setting. Esse fenômeno é caracterizado pela consonância entre o conteúdo que diferentes canais de mídia passam, fazendo com que seja possível manipular o que as pessoas estão conversando e até mesmo suas opiniões sobre essas coisas.
Agenda Setting foi um conceito criado pelo pensador estadunidense Maxwell McCombs, em que desenvolve a ideia que determinados temas são preferidos da mídia e outros mal podem ser veiculados por ela. Segundo o pensador, também há uma espécie de combinado entre canais midiáticos para passarem a mesma informação de forma parecida, fazendo com que as pessoas passem a ter as mesmas opiniões e temam expressar algo em contrariedade à opinião da maioria.
No caso do filme do diretor Todd Phillips, o conceito de Agenda Setting pode ser melhor percebido através das capas de jornais que parecem sempre focar em uma violência crescente de pobres contra ricos. Isso vai culminar com o maior empresário de Gothan, Thomas Wayne, chamando os cidadãos de palhaços. Com aumento das tensões sociais, Thomas se candidata a governador prometendo ser o salvador da cidade, em uma clara analogia de como os políticos escolhem suas palavras a partir das manchetes e capas. Um grande estadista é um perito inato em opinião pública – é uma coisa instintiva, ou se tem ou não (NOELLE-NEUMANN, 1979, p. 155).
O filme Coringa muito foi criticado - principalmente pela mídia - mas não é de se espantar, pois trata do tema mais sensível à sociedade americana: aumento da cultura armamentista e dos distúrbios de ordem mental. Muito se falou da transformação de terrorista em herói a partir de sua vitimização, mas isso muitas vezes se dá, na realidade, pois a mídia americana se utiliza dos atos terroristas para exercer poder sobre a população: a forma como o terrorista vai ser tratado, inclusive se vai ser considerado como tal, depende de sua cor, classe social e nacionalidade. Sendo assim o filme também traz esse questionamento de “quem é considerado terrorista?”, principalmente ao mostrar Arthur Fleck como um homem mentalmente doente que sofreu maus tratos de sua mãe e que está sem tratamento médico devido a falência do sistema público.
Referências bibliográficas:
ALEXANDRE, José Carlos: Uma Genealogia da Espiral do Silêncio. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2017
NOELLE-NEUMANN, Elizabeth: Public Opinion and the Classical Tradition. Oxford: Oxford University Press, 1979
NOELLE-NEUMANN, Elizabeth & PETERSEN, Thomas: The Spiral of Silence and The Social Nature of Man. Florida: University of Florida, 2004
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