Perifericu: retrato da vida nas periferias da cidade e da vida em sociedade dividido em três atos
- camaraescurarevist
- 14 de out. de 2021
- 4 min de leitura
por Mariana Peixoto Alves
(de algum lugar da zona leste de São Paulo)
revisado por Catarina Bijotti
ATO I: Resistência/Existência
Cantar e dançar pra saudar
O tempo que virá
Que foi, que está
Tocar pra marcar
O rito de passá
O rito de passá
(Mc Thá, Rito de Passá)
Existência daqueles que existem nas rachaduras do capitalismo monopolista. Existem, existiram, existirão. Sempre como forma de confronto e resistência da maneira como essa organização da sociedade deve funcionar.
bixa. sapatão. traveco.
Existem. Existimos.
Às vezes, resistir é também trabalhar para sustentar essa existência. É Luz fazendo bolo de coco gelado com a mãe e com Denise para vender na praça Roosevelt durante uma apresentação de Slam. Slam também é resistência. Resistência da garota que vende chiclete no metrô também para existir.
E nessas idas e vindas da vida, às vezes olhar e flertar, mesmo que só de brincadeira com uma mulher bonita, e elogiar as tranças de outra mulher bonita, ambas banhadas pela luz bonita e enquadradas pela janela da CPTM - isso tudo é existência/resistência silenciosa de quem briga para estar ali.
“Que já nascemos mortas não é nenhuma novidade para as senhoras. Mas eu acho que a gente precisa sonhar”
Luz, sentada no chão, encostada na cama que tem como lençol uma bandeira trans
ATO II: Saudade
A chuva vai chegar
Meu corpo foi ao chão
Na palha pra curar
Lavei a alma então
(Mc Thá, Rito de Passá)
O sentimento que emanava de mim ao assistir Perifericu: saudade da minha cidade. São Paulo é tão grande e tão retratada em tantas peças audiovisuais por aí. Mas Luz e Denise, descendo a escada rolante do metrô vazio que acabou de abrir, virando um restinho de Corote da noite anterior, me fez enxergar uma São Paulo diferente dessa que aparece no cinema por aí.
Um filme que mostra o interior do trem da CPTM, com os seus vendedores ambulantes brilhando de suor no sol da tarde que bate na janela e esquenta aquele vagão de ferro.
Um filme que mostra que levam 3 ou mais horas para sair da periferia e chegar no centro, com direito a trem, metrô, ônibus, balsa e uma caminhada - tudo isso combinado com as microagressões diárias de um olhar torto ou de dois garotos de bicicleta da sua quebrada que te perseguem rindo e debochando de quem você é.
Um filme que mostra as rachaduras sociais do centro econômico do Brasil - e todas as formas como nós que aqui habitamos insistimos em seguir, apesar dos pesares, vivendo entre trancos e barrancos.
Afinal, São Paulo é mais que só Paulista, Consolação, Vila Mariana e Pinheiros. São Paulo também é Grajaú, Cidade Tiradentes, Parelheiros e Engenheiro Marsilac.
Periferia que tanto tira da gente. Tempo, oportunidades, acesso. Periferia que para existir cria redes de apoio e de afeto. Mas o que acontece quando você é a periferia da periferia, quando você fica na fenda da fenda do capitalismo? Aí as coisas variam muito - às vezes apoio e afeto, com mães como a de Luz, que não aprova, mas também não abandona a filha, às vezes palavras duras como as que Denise escuta da mãe. Mas uma coisa é certa: a força que você tem que ter pra existir e ser é maior do que a daqueles outros que já fazem uma força descomunal ao seu redor.
Me refiz na lama
Vi pedra rolar
Dancei com a correnteza
Me deixei pro mar
(Mc Thá, Rito de Passá)
Outro sentimento: saudade daqueles que são momentos de libertação solitários no meio da multidão. Saudade da pista de dança, saudade da balada. Saudade de se reunir com amigas para se arrumar para sair para a balada. Saudade daquilo que a pandemia tirou de mim e de tantas outras pessoas que encontravam nesses rituais a leveza de uma existência pautada em força e luta.
Ver Luz e mais outras 5 travestis juntas de uma mulher lésbica ao som de Lia Clark é uma catarse nesse sentido. Faz sentir, junto do estrobo que pisca, a emoção dos diabos que são expiados por aqueles corpos que pulam.
Uma saudade que eu não tenho, porque nunca senti, mas que sei que não tenho e que nem ninguém mais tem: ser abordada pela polícia pelo simples fato de existir e ter a cor da pele que minha mãe me deu.
Ninguém tem essa saudade. Porque não é o tipo de coisa que deixa lembranças que são boas de se rememorar. E porque nunca deixou de acontecer. Denise sente na pele, como o simples fato de ser quem é a coloca numa mira, quando é abordada pela polícia apenas caminhando pelo centro da cidade. E nós, espectadores, pelo menos três vezes ao longo dos 20 minutos do curta, somos lembrados dessa sensação que não deixa saudade, mas permanece com quem sofre por muito tempo - se não para sempre.
“Eu burlei o sistema de várias maneiras,
Eles me temem sou da maloca prolífera”
(Psicopretas Vol.2)
Luz e Denise subindo a quebrada pela manhã, às 7 da manhã após uma noite fora
ATO III: Força
A flecha atirei
Onde caiu bradei
O céu relampiou
(Mc Thá, Rito de Passá)
Força é o nome do meio de todos os filhos de mães pretas. É o sobrenome de mulheres que amam mulheres. E o nome de batismo dos que não enxergam a si mesmo no sexo que alguem disse que era deles.
Força pra aguentar o desemprego, como Denise. Força pra aguentar comentários não solicitados de pessoas pouco conhecidas, como Luz que precisa ser chamada no masculino por vizinhas que batem na porta em busca de fofoca. Força para segurar a barra de ouvir coisas que não se deseja ouvir da própria mãe, como Denise… que coloca em palavras um pouco dessa angústia de ter que ser forte o tempo todo.
O poema que Denise recita ao final do filme, com uma câmera que quase a devora, câmera ansiosa pelas palavras também ansiosas que jorram sem parar. Se pudesse citava todo ele aqui, mas termino como Denise termina…
“Eu não queria te questionar Deus, mas eu acho que te… deu um branco na hora que me escolheu”
Epílogo
Resistir. Existir. Saudade. Força.
Força para resistir, e saudade de um tempo que ainda não veio e em que existir vai ser mais fácil.
Porque a gente precisa sonhar...
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