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Política e Cinema: Atravessamentos

  • camaraescurarevist
  • 14 de out. de 2021
  • 9 min de leitura

por Lucas Rangel

revisado por Mariana Peixoto


A transição entre o Cinema Pós-retomada e o Novíssimo Cinema Brasileiro talvez seja um dos períodos na história do Brasil onde se pode verificar transformações sociais acontecendo de forma mais abrupta, o que não raro costuma acontecer por aqui. Porém, desta vez, beneficiando o povo de maneira nunca antes vista (pelo menos não na intensidade que foi marca do governo Lula).

A indústria cinematográfica brasileira passou por diversas fases ao longo da história: de sucateamento e revitalização, seguindo mais ou menos o contexto econômico conturbado do país como um todo. Isso se dá principalmente devido à posição subserviente de algumas parcelas da população em relação aos países mais desenvolvidos, o que impede que tenhamos uma política a longo prazo de construção de uma autossuficiência e capacidade de competição internacional dos nossos produtos.

Esse talvez seja o motivo principal de nosso cinema (assim como outras indústrias) ficarem à mercê da implementação de políticas públicas de fomento, políticas essas que quando postas em prática mostram toda nossa capacidade de criação e produção e podem assim ser capaz de, a partir da consolidação de um público, engendrar o orgulho nacional que talvez sirva como freio para possíveis novos desmontes neoliberais.

Foi entre 2002 e a 2015 o período, por exemplo, que o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU e logrou o sexto lugar entre os maiores PIBs do mundo. Essa conjuntura política, evidentemente, influenciou fortemente nas mudanças sofridas pelo processo produtivo da indústria audiovisual brasileira, o que por sua vez produziu um novo conjunto de características em comum entre as obras cinematográficas desse período, servindo como o espírito do tempo.

Em uma dessas idas e vindas, quando no governo Collor houve o encerramento da Embrafilme e, com isso, praticamente um apagão do cinema nacional, chegando a diminuta produção de cerca 3 filmes por ano entre 1991 e 1995. A Embrafilme era a empresa que tinha como função o fomento da produção e distribuição de filmes brasileiros. Entre 70 e 80 a empresa lançou em média 25 filmes por ano.

Em 1995 é lançado Carlota Joaquina, filme que serviria como marco da revitalização do cinema nacional. Essa revitalização se deu por algumas medidas tomadas logo após o fim da Embrafilme: em 1991 é implementada a Lei Rouanet e em 1993 a Lei do Audiovisual. Já em 1995 é possível perceber os efeitos desse fomento: em 1995 são produzidos 10 filmes, e 22 em 1997.

Para entendermos o Cinema Pós-Retomada precisamos primeiramente entender o Cinema da Retomada, que deixou muitas características de herança ao movimento que o seguiria.

O Cinema de Retomada se refere a um período de revitalização do setor do audiovisual após o hiato do início da década de 90. As produções desse período vão ter como tema central de seus enredos eventos históricos e as problemáticas sociais, tendo a violência urbana um lugar de destaque aqui.

Podemos compreender a preferência por temas históricos como um reflexo da redemocratização, mais precisamente o fim da censura, pois finalmente os cineastas poderiam contar a história do próprio país sem a necessidade de passar pelo filtro dos militares como durante a ditadura, período marcado pelo apagamento da memória. Após tanto tempo de manipulação da imagem de si que o Brasil poderia ver nas telas, os produtores finalmente poderiam abordar temas importantes para a conscientização política e histórica nacional. Nesse momento foram lançados filmes como “Baile Perfumado”, “Lamarca”, “O Que É Isso Companheiro”, “Guerra de Canudos”, entre outros.

Já a temática da violência urbana também pode ser entendida como um reflexo histórico. O país viveu durante a ditadura militar um dos períodos mais intensos de êxodo rural de sua história. A maquiagem institucional da época fazia propaganda das cidades como áreas de prosperidade, porém a modernização econômica sem nenhuma preocupação com os direitos humanos básicos foi responsável pelo agravamento da precarização da vida nas cidades, e assim a violência urbana explodiu.

É sobre esse pano de fundo que o cinema nacional vai abordar a temática da violência em filmes como “Guerra de Canudos” e “Baile Perfumado”. Esses filmes, assim como outros expoentes da mesma época, mostravam a violência de forma a adequar as imagens a uma estética mercadológica para facilitar o consumo e em muitas vezes chegava a representar as mazelas sociais de forma romantizada sem trazer à tona uma reflexão sobre as suas causas.

O Cinema da Retomada usava a violência como um atrativo, de forma muitas vezes alienante, e tratavam as desigualdades sociais de forma melodramática explorando ao máximo o pathos resultante de uma sociedade em ebulição. Diferente do Cinema Novo, que propunha retratar a violência e outros problemas sociais a partir de uma estética que incomodasse tanto quanto o problema em si, os filmes da Retomada se aproximavam muito do gênero de ação estadunidense, com cenas espetaculosas de violência (que se assemelhavam aos programas “pinga sangue”, também característicos dessa época) alternadas por uma montagem frenética que visava a descarga emotiva.

Na contramão da complexidade das problemáticas nacionais, os cineastas da Retomada vão optar por narrativas clássicas, mais fáceis, filmadas com certo preciosismo técnico e um belo tratamento de imagem, parecendo muito com o modelo de produção conhecido como Hollywoodiano. Esses aspectos serão responsáveis por uma similitude dos filmes produzidos nesse período: a violência passa a ser um grande show e é mostrada de forma quase nada reflexiva, mas contemplativa, como analisado por Fernão Ramos:

Um brutalismo que teria como base altas descargas de adrenalina, reações por segundo criadas pela montagem (...) as bases do prazer e da eficácia do filme norteamericano de ação, onde a violência e seus estímulos sensoriais são quase da ordem do alucinatório, um gozo imperativo e soberano em ver, infligir e sofrer a violência, a qual é transformada, portanto, em ‘teleshow’ da realidade, que pode ser consumido com extremo prazer, mostrando-se randômica, destituída de sentido [chegando] à pura espetacularidade (2003, p. 384).

Outros exemplos desse período são “O Que É Isso Companheiro” de Bruno Barreto e “Central do Brasil” de Walter Salles.

A partir desse panorama podemos traçar uma linha de correlação entre a realidade sócio-histórica do período e a produção cinematográfica. Havia um enorme esforço para o fortalecimento da produção nacional, formação de plateia e a busca por uma autossuficiência, visando recuperar o tempo perdido durante o regime militar no qual Brasil se punha em uma posição de subserviência em relação aos EUA. Mesmo que bons filmes tenham sido produzidos durante a ditadura, a censura e a centralização das tomadas de decisão quanto a política de incentivo à cultura, impediam que o público tivesse acesso ao trabalho de cineastas, que muitas vezes se encontravam exilados.

Seguindo essa lógica, durante período que se deu na fase inicial do processo de redemocratização, tanto nosso cinema, quanto economia de modo geral, optaram por seguir a cartilha do mercado neo-liberal, tomando decisões que prometiam um melhor posicionamento no cenário internacional e um aumento do número de consumidores, o que no final se mostraria como uma falsa promessa.

Foi nessa época que a maior parte da população passou a ser objetificada como consumidores úteis e políticas paliativas de aumento da qualidade de vida voltaram a ser o alvo da vez de uma elite decadente. O tecido social fica cada vez mais tensionado e eis que surgem os programas como o Linha Direta que transformariam a violência urbana em um grande espetáculo do qual as populações subalternizadas seriam os vilões. Devido a esses fatores, filmes como “Central do Brasil” e “Como Nascem os Anjos” podem ser considerados emblemáticos desse período, quando a pobreza é vista como pano de fundo de histórias dramáticas intercaladas com cenas de brutalidade e crueldade.

Muitas dessas características do Cinema da Retomada vão se agravar no período seguinte, que se convencionou chamar, não por acaso, de Pós Retomada, quando a violência toma o espaço antes dividido com a temática histórica. Esse é o principal motivo pelo qual a Pós-Retomada tem como seu marco inicial o filme “Cidade de Deus” e como outro forte exemplo “Tropa de Elite”. A principal diferença entre a Pós Retomada e o movimento que a antecede é a uma diferença mercadológica: na Pós-Retomada os filmes nacionais passam a lograr maiores bilheterias, resultado esse obtido tanto pelos esforços dos seus antecessores como pela entrada da Globo no mercado do cinema.

Esse boom possibilitou também que produções mais independentes emergissem, margeando esse mercado crescente, e permitiu que filmes de cunho autoral e de baixo orçamento pudessem chegar ao público, o que também foi facilitado pelo processo de democratização da internet. E então, com o fortalecimento de empresas nacionais lutando pelo mercado interno e o aquecendo de modo que favorecia até os realizadores que a elas se contrapunham, visto que, muitas das vezes é trabalhando como funcionário de uma grande produtora que cineastas juntam o dinheiro que pagará seu filme autoral.

Esse período é marcado historicamente pelo aumento da classe média e, seguindo essa tendência, a indústria cinematográfica do Brasil aposta em fórmulas prontas, já testadas, como o apelo à violência e à comédia barata. Mas não só desses blockbusters constitui-se tal período. Junto com o aumento da classe média floresceu também um regionalismo pelas mãos de diretores autorais que não mais se concentravam todos no eixo Rio-São Paulo, como Karim Aïnouz que dirigiu “Madame Satã”, além de Gabriel Mascaro com seu documentário “Um Lugar ao Sol”.

É nesse período chamado de Pós Retomada que Kleber Mendonça lança seu primeiro curta, “A Menina do Algodão”, que vai contar uma das mais conhecidas lendas urbanas do país, tendo por isso forte apelo ao público e um caráter menos reflexivo e menos apegado a discussões de cunho político. É nesse momento também que a Globo Filmes, então recém-chegada ao mercado, vai produzir filmes com o mesmo cunho recreativo e de fácil consumo, como o sucesso de bilheteria “Xuxa”.

Logo após “A Menina do Algodão”, Kleber lança outro curta chamado “Vinil Verde”, baseado no conto infantil russo “Luvas Verdes”. Esse por sua vez possui um caráter mais reflexivo, mas é igualmente pouco político, discutindo problemáticas individuais. “Recife Frio” é o primeiro curta do diretor que vai romper com esse padrão e tratar de uma temática de maior relevância social: uma das principais discussões trazidas pelo filme é o processo de aculturação provocado por uma supervalorização da cultura americana (ou europeia). Essa transição serve como um bom exemplo para analisarmos as transformações ocorridas entre a Pós-Retomada e o Novíssimo Cinema Brasileiro.

O Novíssimo Cinema Brasileiro tem como marco inicial a participação de “A Alegria”, de Felipe Bragança e Marina Meliande, na Quinzena dos Realizadores, evento paralelo ao Festival de Cannes. Uma de suas principais características é a incorporação da precariedade como força criadora capaz de proporcionar à produção de um filme a complexidade do ser Brasil a partir de uma mistura entre pulsão de vida e certa agressividade.

Como o filósofo Mangabeira Unger (2018) costuma dizer, o que o Brasil tem de essencial, e de longe mais do que qualquer outro país, é a vitalidade, a capacidade de superar desafios e uma pulsante criatividade. Segundo ele é a partir disso que devemos, como país, tomar nossas decisões políticas, de maneira a potencializar essas características e não seguindo uma cartilha de leis do mercado que talvez seja economicamente favorável, mas que invariavelmente acaba por suprimir todas as diferenças. Características essas que o Novíssimo Cinema Brasileira compreendeu, assimilou e hoje mostra aos espectadores brasileiros.

Esse novo movimento é caracterizado pelo aumento da produção de filmes de alta qualidade, com uma temática social fortemente marcada, fazendo muitos de seus expoentes concorrerem em festivais internacionais. Isso se deve ao fato de, a partir de 2010, após a consolidação de um público para os filmes nacionais e o fortalecimento de incentivos públicos culturais, diretores como Kleber Mendonça puderam arriscar a fazer filmes que não fossem apelativos, como os filmes Pós-Retomada.

Essas mudanças foram possibilitadas por uma consolidação econômica ainda que breve e por uma permanência das problemáticas sociais mais graves, fazendo com que, principalmente a partir do golpe de 2016, com a derrocada econômica esses problemas se agravassem. Nesse panorama temos “Aquarius”, um drama sobre uma mulher que vive muito bem sozinha, mas é vista como solitária que tem como pano de fundo o processo de gentrificação e o terror perpetrado pelos donos do capital contra os indivíduos para realizarem seus projetos. “O Som ao Redor” por sua vez conta a história, aparentemente banal, de uma mulher sofrendo psicologicamente devido aos latidos do cachorro do vizinho, tendo como pano de fundo a as ações cometidas por uma milícia que passara comandar sua rua a partir da contratação de um serviço de segurança privada. Com esses exemplos podemos perceber uma nova forma de trabalhar a narrativa, uma vez que os filmes de Kleber muitas vezes possuem um protagonismo difuso, sendo muita das vezes uma região, uma rua, uma cidade, um espaço, o real protagonista do filme.

"Bacurau” por sua vez traz consigo uma forte pegada da retomada, uma vez que espetaculariza a violência e pouco ou quase nada contribui para o debate sobre as causas da problemática que representa. Além disso, se parece muito com o gênero faroeste americano. Ele trata de temáticas complexas como imperialismo e a militarização, e faz todos vibrarem com a vingança de morte contra os estadunidenses e tem uma função muito mais catártica do que conscientizadora. Filme esse que foi lançada em 2019 quando já existiam provas que o Departamento de Justiça norte americano foi o responsável pelo treinamento do Juiz Sérgio Moro e por trocas de informações sigilosas em detrimento da defesa de Lula, o que talvez tenha sido metaforizado por Kleber a partir do sistema de vigilância ao qual a cidade de Bacurau estava submetida.

Por fim, sempre podemos perceber diversas semelhanças entre filmes de diferentes diretores produzidos em um determinado período, devido ao contexto sócio-histórico em comum ao qual estão inseridos. Por esse mesmo motivo podemos perceber também diversos atravessamentos entre o debate político e a produção cinematográfica. É óbvio que todas as formas de arte guardam uma relação intrínseca com as condições que as cercam, mas o cinema em especial, por depender em grande parte de um aparato industrial, pode ser considerado uma forma privilegiada de analisar as transformações sofridas pela sociedade a qual pertence: se por um lado temos a subjetividade artística necessária para a produção de uma obra de arte, por outro temos toda questão material, econômica e mercadológica necessária em todas as etapas desde o projeto a distribuição.


Referências

RAMOS, Fernão Pessoa. Má-consciência, crueldade e narcisismo às avessas no cinema brasileiro contemporâneo. Estudos Socine, São Paulo, Ano IV, p.371-379, out. 2003.


Unger, Roberto Mangabeira. Depois do colonialismo mental: repensar e reorganizar o Brasil. São Paulo : Autonomia Literária, 2018.


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