Uma Heroína Deletada da História
- camaraescurarevist
- 14 de out. de 2021
- 9 min de leitura
por Lucas Gonçalves Rangel
revisado por Catarina Bijotti
A partir da ruptura democrática ocorrida após o golpe inconstitucionalissimamente deferido contra a primeira presidenta do Brasil, Dilma Roussef, no ano de 2016, percebeu-se novamente um espectro rondando o país: o espectro da censura. Embora mesmo no apogeu do nosso processo de redemocratização, durante o governo nacional do Partido dos Trabalhadores, muitas garantias constitucionais ainda não fossem de facto verificáveis, é inegável a aceleração da corrupção do nosso Estado Democrático de Direito a partir do desgoverno de Michel Temer. A passos largos perdemos cada vez mais direitos fundamentais sem necessidade alguma de mudança no ordenamento jurídico, seja pela alegação de uma suposta impossibilidade material do Estado em promover tais direitos, seja pelo abuso de autoridades que cassam os direitos de cidadãos para a obtenção de benefícios pessoais. Um exemplo disso é o Direito à Liberdade de Expressão que nunca esteve tão abalado (pelo menos não desde o fim da ditadura militar) como está agora durante a tirania de Jair Messias Bolsonaro.
Esse problema ficou ainda mais evidente com os holofotes apontados ao Brasil, tanto durante a Copa do Mundo quanto pelos Jogos Olímpicos. Historicamente as competições esportivas internacionais sempre serviram como palco para propaganda política de regimes autoritários, mas não só: também foram umas das únicas possibilidades de denunciar esses regimes as outras nações. Um exemplo disso foram as Olimpíadas de 1936 em Berlim em que Adolf Hitler, já no poder, tentou vender a imagem de uma Alemanha pacífica e tolerante. Por outro lado, durante as Olimpíadas do fervilhante ano de 1968, na Cidade do México, os estadunidenses Tommie Smith e John Carlos subiram no pódio dos 200 metros rasos e ergueram seus punhos em riste com suas as cabeças baixas numa clara referência ao movimento dos Panteras Negras.
Foi sobre esse pano de fundo que o documentarista Thiago Mendonça produziu “Procura-se Irenice”, o seu último curta-metragem apresentado durante a Semana Rec aos alunos da Universidade Anhembi Morumbi. A obra é um resgate à memória de Irenice Maria Rodrigues, uma corredora recordista que foi apagada da história por não ter aceitado se sujeitar aos ditirambos ocorridos durante a ditadura militar. Com estilo participativo, o documentário conta com vários relatos e, além de servir como tributo à memória da campeã, também faz um retrato do estado da polarização política que vivemos hoje no Brasil ao mostrar um amplo panorama de opiniões. Sendo assim, podemos perceber, a partir do ponto de vista de diferentes personalidades sobre uma figura polêmica como a Irenice, as feridas profundas deixadas pelo golpe de 64.
O documentário se inicia com pesquisadores relatando sobre a dificuldade de se encontrar informações sobre a atleta e que o que lhes chamou a atenção foi o fato de seu nome constar na lista do Comitê Olímpico Brasileiro seguido de “desligada da delegação por motivos de indisciplina”. Foi a partir dessa falta de dados sobre uma esportista olímpica rebelde que começou toda uma busca de arquivos que culminaria na produção do curta-metragem do Thiago. Da mesma forma como aconteceu com Irenice, muitas outras histórias têm sido recuperadas desde o processo de democratização em um árduo trabalho de resgatar tudo o que foi apagado pelos militares. Outro exemplo disso foi a Comissão Nacional da Verdade, que tinha como objetivo a investigação de violações dos direitos humanos ocorridos entre 1964 e 1988 e que infelizmente foi duramente atacada, não podendo concluir seu trabalho como deveria.
É muito comum escutarmos que “o brasileiro tem memória fraca” e que “não sabemos lidar com nosso passado”, o que é uma inverdade, pois nunca tivemos essa possibilidade. O processo de redemocratização no Brasil foi feito a partir de diversos acordos firmados com militares, o que já naquela época indicava a força que esses continuariam a ter mesmo após 1988 e que por fim resultou, dentre várias coisas, numa dificuldade de se investigar o que se passou nos porões da ditadura. É claro que uma minoria, por culpa, recalcou o que viveu durante a ditadura e por isso não consegue ressignificar essas experiências transformando-as em aprendizado. Apesar disso, essa não é a mesma causa da aparente avalanche de novos apoiadores da militarização da vida e da violência estatal que vemos atualmente.
Foi justamente por não termos tido o direito, como povo, de contar a nossa versão da história sobre o que ocorreu durante a ditadura e por termos que competir com as narrativas contadas pelos militares (se valendo de uma suposta liberdade de expressão) que a mentalidade dos jovens foi contaminada pelo vírus anti-democrático do autoritarismo. Após a primeira eleição direta deveríamos ter investigado e condenado todos os torturadores, devíamos ter passado a punir qualquer militar que viesse a público expressar opiniões políticas, para evitar, por exemplo, termos hoje um número de militares em cargos de confiança no governo federal maior do que em qualquer período da ditadura: são mais de 6.000 militares.
As problemáticas acima são algumas das causas da ditadura ser um tema ainda incontornável. 36 anos após seu fim, vivemos hoje sobre a estrutura construída ao longo de 21 anos. Como dito pelo diretor Thiago Mendonça, os erros do âmbito econômico ainda reverberam por toda sociedade, pois o projeto conservador de desenvolvimento posto em prática naquele período não tinha como objetivo a inclusão da maior parcela da população. Foi nesse período que ocorreu o que ainda se chama erroneamente de Milagre Econômico Brasileiro: o PIB nacional crescia cerca de 10% ao ano e as cidades também cresciam vertiginosamente ao mesmo passo de suas populações. Isso seria verdade se não tivesse sido feito à base de empréstimos bilionários que deixariam o Brasil refém do pagamento de juros exorbitantes durante décadas: somente em 2005, durante o governo Lula, nossa dívida com o Fundo Monetário Internacional foi quitada.
Tendo como um dos principais objetivos impedir a reforma agrária, e ainda por cima maquiando um falso crescimento econômico, a ditadura foi um dos períodos de mais intenso êxodo rural do país. Os até então camponeses eram atraídos às grandes metrópoles por promessas de uma vida melhor, mas os militares não foram capazes de implementar uma política habitacional inclusiva que pudesse suprir toda a demanda por moradia nas grandes cidades. Eis que o número de moradores de áreas sem nenhuma infraestrutura, as favelas, aumentou intensamente e, inevitavelmente, devido a esse processo de exclusão, a violência urbana explodiu e ainda parece longe de ser solucionada.
Outra forma de violência ainda mais nociva cujas raízes remontam àquele período é a violência estatal. Segundo o filósofo Vladmir Safatle, o Brasil foi o único país do cone sul a não prender nenhum torturador e o único cujos casos de tortura foram cada vez mais frequentes após o fim da ditadura militar. Outro aspecto remanescente é a censura esportiva: assim como aconteceu com Irenice Maria Rodrigues, presenciamos várias vezes após o golpe de 2016 atletas e torcedores sendo punidos por expressarem opiniões contrárias aos novos regimes de extrema direita. Foi esse o caso de Carol Solberg, que logo após ganhar uma medalha por vencer uma partida de vôlei de praia gritou “Fora Bolsonaro” sendo punida posteriormente pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva. Segundo argumentos do STJD, o motivo para a condenação seria um suposto prejuízo à Confederação Brasileira de Vôlei e seu patrocinador, o Banco do Brasil. Acontece que à época o responsável pelo departamento de marketing do BB era Antônio Hamilton Rossel Mourão, filho do vice-presidente de Jair Messias Bolsonero, Hamilton Mourão. A pergunta que fica é, se de fato tal prejuízo pudesse ser verificável, isso por si só já não seria prova de um cerceamento à liberdade de expressão? Como poderiam, tanto o BB como a CBV, ser prejudicados com uma simples crítica feita por uma jogadora de vôlei ao presidente da república?
Um caso semelhante aconteceu com Irenice no politicamente intenso ano de 1968: durante as Olimpíadas sediadas na Cidade do México, a atleta foi desligada e obrigada a voltar ao Brasil. O mundo estava fervilhando e o Brasil não era diferente: assassinato de Martin Luther King, revolução de 68 na França e a Primavera de Praga, lançamento do disco Tropicália ou Panis et Circencis, de 2001: Odisséia no Espaço e, por fim, a promulgação o Ato Institucional Número 5. Mais conhecido como AI-5, o decreto suspendia qualquer direito fundamental então garantido pela constituição: assim começava os anos de chumbo que só terminariam no fim do governo Médici. E foi nesse contexto que Irenice não aceitou ser calada e, por isso, acabou sendo punida.
Ainda no início do documentário, pessoas que trabalharam com Irenice, como treinadores e outros corredores, contam sobre como ela superou todas as expectativas daqueles que a julgavam incapaz. Naquela época os 800 metros era uma competição proibida no Brasil por uma suposta alegação médica que essa modalidade seria prejudicial ao corpo feminino. Confirmando a confiança do treinador, a campeã começou a treinar para a prova e conseguiu se classificar para os jogos Pan-Americanos de Winnipeg: chegando lá Irenice não só ganhou as provas, tanto de 400 metros como a de 800 metros, mas bateu o recorde sul-americano, que ainda lhe garantiriam o posto de corredora mais rápida do Brasil mais de 50 anos depois.
Irenice Maria Rodrigues nasceu em Itabirito-MG, cidade para a qual o diretor Thiago Mendonça viajou para se encontrar com os familiares da atleta olímpica. Como dito por um de deles: “ela não se importava com o julgamento das outras pessoas, para ela isso não fazia diferença nenhuma. Ela era autêntica.” Foram justamente essas características que tanto incomodavam os grandes órgãos que controlavam o esporte durante a ditadura militar, órgãos esses que, por sua vez, eram controlados por militares de alta patente. O desconforto do regime com a atleta se intensificou quando ela buscou se classificar para uma prova que até então era proibida. Apesar disso, esse não foi o início: ela sempre foi vista como uma pessoa contestadora e crítica da ditadura e, por ser uma mulher negra de origem pobre, era tida como perigosa à frágil (des)ordem social imposta. Mesmo assim ela não deixou de lutar pelo que achava certo.
No ano de 1967 Irenice liderou uma greve contra o Comitê Olímpico Brasileiro. Tudo começou quando ela foi barrada, por ser negra, em um baile em comemoração às vitorias do atletismo no Clube Fluminense, do qual ela fazia parte da equipe. Não se desculpando e reiterando o comportamento racista, o clube ainda negou à sua própria equipe os uniformes para a competição que se seguiria, mas eles não desistiram e foram para a pista com camisas brancas. Esse foi o estopim para que a atleta se juntasse a outros esportistas de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo numa greve que denunciava as condições extremamente desfavoráveis impostas ao atletismo brasileiro. É nesse momento do documentário que a atleta Wanda dos Santos, ao ser perguntada se participou da greve, respondeu sorrindo que não perdia tempo com isso.
O fim trágico nos jogos de 1968 na Cidade do México aconteceu quando Irenice tentou convencer os guardas do estádio a liberar a sua entrada para que ela treinasse à noite. Quando ela estava prestes a conseguir, sua companheira que a acompanhava, Maria Cipriano, dedurou Nelson Prudêncio contando aos guardas que ele havia burlado a segurança e treinava tranquilamente na pista. Sem entender o motivo daquilo, Irenice indagou o porquê de dedurar o companheiro, mas Cipriano elevou o tom de voz provocando uma discussão. Por fim, apenas Irenice foi expulsa de volta ao Brasil, Cipriano seguiu na competição e Nelson Prudêncio também, conquistando uma medalha de prata. Segundo uma amiga, ao chegar no Rio de Janeiro Irenice lhe disse que “a sorte deles foi que o avião não parou em Paris, porque senão eu iria fugir.”
Já se aproximando do fim, o documentário mostra o desfecho da carreira de Irenice: em 1971 durante uma competição internacional, é dada a largada, mas a recordista não corre, apenas caminha lentamente pela pista do estádio. Então vemos uma atriz representando Irenice sobre um fundo branco, imobilizada por uma bandeira do Brasil que a envolvia e com a boca calada com uma fita, enquanto se contorce para tentar se libertar e gritar, mas não consegue.
Por fim, esse documentário pode ser compreendido no contexto atual como uma crítica à política governamental de ocultação da verdade, por isso é tão fundamental atualmente. O governo Bolsonaro muito conhecido pela propagação de mentiras não atua apenas nessa linha de frente para distorcer a realidade, além disso ele tem sido marcado por um forte retrocesso na transparência, se recusando por diversas vezes a divulgar informações de interesse público, violando claramente a lei.
Mais do que nunca somos chamados, não só a estarmos vigilantes em relação às ações tomadas pelo poder público, como também a escavarmos tudo aquilo que se tentou esconder em governos anteriores. Apenas munidos de informação podemos lutar contra as tiranias de detentores do poder que tentam acobertar seus crimes impedindo a imprensa e o povo de conhecerem a verdade. É por meio do estudo do nosso passado que podemos entender o presente e projetarmos um futuro melhor. E foi justamente por isso que a história de uma heroína como Irenice Maria Rodrigues foi completamente apagada dos arquivos pelos militares.
O documentário de Thiago Mendonça jogou o holofote sobre uma personagem completamente desconhecida dos brasileiros e que muito tem a nos inspirar na luta que devemos travar contra o autoritarismo que volta a assombrar o país. Mulher negra de origem pobre, Irenice teve de enfrentar diversos obstáculos para poder treinar. Superando todas as expectativas se tornou uma recordista, o que fez com que se intensificasse a perseguição à ela. Os tiranos não podiam aceitar que uma mulher negra e pobre ganhasse o ouro olímpico e servisse de exemplo aos jovens com a mesma origem. Irenice Maria Rodrigues ganhou muito mais do que uma medalha de ouro. Se tornou símbolo da incansável luta pelos direitos humanos e contra o autoritarismo.
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