Atire Se For Homem : Revolta e Permanência em "Sertânia"
- camaraescurarevist
- 24 de nov. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 2 de dez. de 2020
Por Gabriel Higa

Sertânia (2019)
“É a valência que nós temo. Nós vive e nós morre. Nós mata. E nós também é morto. Caboclo não tem mais nada, não”
A câmera rasteja sobre o seco chão da caatinga. Como uma cobra, uma jararaca. A câmera em transe, com o perdão da palavra glauberiana. Passando pelo solo rachado, pelos galhos retorcidos, é invadida pelo sol escaldante. Ela foca e depois abandona os rostos das pessoas, acompanhando o vai e vem de delírios e memórias.
Sertânia é uma obra de vitalidade e peso, daquelas atemporais. Dirigido por Geraldo Sarno, veterano do Cinema Novo, o filme armazena uma dicotomia: o perene, o universal, a permanência de estruturas violentas e arcaicas na história do nosso país, como também a intermitência, o livre trânsito entre vida e morte, fluxos de consciência e o corpo como território passageiro.
Antão, sobrevivente de Canudos, emigrou muito cedo para São Paulo, junto com sua mãe. Após a morte desta, retorna ao sertão em busca do paradeiro de seu pai, e acaba se juntando ao bando do temido cangaceiro Jesuíno Mourão. O longa se desenvolve a partir das imagens de delírio do protagonista, alvejado, agonizando no chão do sertão.
O sertão nordestino é tema caro para Sarno. Autor do seminal Viramundo (1965), o diretor demonstra, em toda a sua filmografia, uma preocupação com os problemas sociais do país, um olhar constante sobre o fenômeno das migrações, a situação da classe trabalhadora, a miséria e o poder que brutaliza as estruturas arcaicas do Brasil desde sempre. Sertânia é a persistência do Cinema Novo, uma espécie de epílogo, que em pleno 2020 não esgotou suas possibilidades temáticas e pressupostos ideológicos: a fome ainda está aí.

Sertânia (2019)
Totalmente filmado em preto e branco, o filme jamais utiliza o artifício de forma a ressaltar uma “cosmética da fome” ou como puro maneirismo estético. A imagem digital ressalta a dureza dos rostos e do ambiente, invade a lente com o branco da luz e captura belíssimos quadros. A câmera inquieta lembra Dib Lutfi, pilar da nossa cinematografia, ao passo que a fotografia estourada remete ao clássico Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, captando a aridez de um local tão hostil.
A hostilidade e a dureza não se limitam somente ao semiárido nordestino. Como Guimarães Rosa, Sarno revela o “sertão-mundo”: por meio de jagunços e coronéis, temas profundamente regionais, revela um universalismo, um drama humano existente em todo lugar, em todas as épocas. Os problemas do Brasil de um ou dois séculos atrás continuam presentes em 2020. Hoje, “coronéis” continuam mandando e desmandando por aí. A polícia extermina corpos pretos nas nossas periferias a cada dia que passa. Dez milhões de pessoas passam fome em suas próprias casas.
Quando Antão se recusa a reprimir os retirantes famintos a fim de defender os senhores ricos da vila, ele afirma incessantemente que “o povo não tem culpa pela fome”. A conclusão do revoltado cangaceiro, ao se identificar com os que sofrem, dialoga com Terra em Transe, obra prima de Glauber Rocha. Sara, personagem interpretada por Glauce Rocha, insiste em dizer que “a culpa não é do povo” por esse se encontrar em transe e em situação miserável. Ela tenta aplacar a angústia de Paulo, que enxerga na passividade do sujeito popular uma profunda alienação, uma incapacidade de práxis revolucionária que induz ao intelectual de esquerda a tomada para si de um discurso que seria do outro. Essa questão da “imagem do povo” como monopólio de uma classe média intelectualizada perpassou a cultura brasileira ao longo de décadas, e Geraldo Sarno transpõe com êxito a problemática para seu filme. Antão se reconhece naquele povo sofrido e, enfim, revolta-se contra os verdadeiros inimigos. Não sem antes levar um tiro no peito e ver sua vida passar diante de seus olhos.

Terra em Transe (1967)
No filme de Geraldo Sarno, o incômodo na representação do “outro-popular” é levado às últimas consequências. Filmando as festas, as canções, Sertânia assume o transe e se utiliza do afastamento crítico (Verfremdungseffekt), teorizado por Bertolt Brecht, para uma análise crítica da realidade, tornando claro que o espectador está à frente de uma obra de arte, uma representação . As idas e vindas no tempo, a repetição de cenas, a diegese sonora incômoda que pontua alguns momentos, os olhares para a câmera, a metalinguagem revelando um filme. O tempo desconstruído, sem limites lógicos, aos sabores de um fluxo de (in)consciência, ressalta esse distanciamento do público e abre espaço à sua reflexão em relação aos problemas levantados pela obra. A realidade dura do brasileiro é um teatro do absurdo, do qual são revelados o palco, as cortinas, o cenário e os atores.
Esse vai e vem, o eterno trânsito entre passado, presente e futuro, ecoa no protagonista desencontrado, desiludido, sem rumo e sem referências. Ele pergunta a todo momento: “cadê o pai?”. Trata-se de uma busca incessante, sem resposta. A perda das referências é o desamparo do brasileiro. O que resta é agonizar, o que resta é o transe. Resta a morte.
A morte é tema central de Sertânia. Antão lutou por várias causas, procurou respostas e se encontrou inexoravelmente com a morte. A naturalidade com que os personagens transitam pelos momentos além-vida se relaciona com a dura condição de boa parte do nosso povo, imerso em violência e brutalidade. O que se conclui é que a morte comanda o Brasil. A violência é uma constante, uma política de Estado, destinada a excluir corpos e manter velhas estruturas. Como diria Achille Mbembe, é a aplicação da necropolítica.

Sertânia (2019)
A obra de Geraldo Sarno é potente insistência do Cinema Novo em bater à nossa porta. É possível estabelecer comparativos com Guerra do Paraguay, de Luiz Rosemberg Filho, lenda do Cinema de Invenção. Filmados em preto e branco, dirigidos por dois veteranos do cinema nacional em idade avançada, possuem um ponto de contato em comum: o questionamento atemporal da presente realidade. No caso da obra de Rô, o fascismo, a boçalidade, o discurso e a guerra. Ainda que haja diferenças na abordagem artística, ambas retratam a brutalidade do homem.
Sertânia provavelmente dará muito o que falar. De potência absurda, discorre sobre muito sem se deixar saturar. O modo como trata o nosso corpo presente como passagem de memórias, a morte como ritual, ao mesmo tempo contém uma forte denúncia. O tempo cinematográfico, tão dilatado no cinema contemporâneo a ponto de, às vezes, torna-se vazio, aqui é tratado de maneira sublime e consciente. Consciência que transforma o regional em universal. Lição de um mestre do cinema brasileiro, Sertânia prova, assim como Guerra do Paraguay, que as propostas de décadas atrás continuam presentes. Renovam-se, transformam-se, regurgitam. É o que o cinema tem de mais lindo.
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