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"Branco Sai, Preto Fica" e o Pós-Humanismo Ciborguista

  • camaraescurarevist
  • 24 de nov. de 2020
  • 5 min de leitura

Atualizado: 2 de dez. de 2020

Por Vitória Oliveira Flamarion Pires


Resumo: Este artigo tem como objetivo relacionar os conceitos básicos do Ciborguismo de Donna Haraway com o filme “Branco Sai, Preto Fica” de Adirley Queirós, e por tanto com o Massacre do Quarentão, episódio real de violência policial com profundas características racistas ocorrido em Ceilândia, DF no ano de 1986. O artigo, que se baseia em revisão bibliográfica e documental, também cita os conceitos de Biopoder e Disciplina de Foucault.




O humanismo tradicional, que surge com o Renascimento, encontra na existência enquanto ser humano um fator unificador, algo que toda a humanidade teria em comum. O pós-humanismo critica esse ideal ao apontar que esse “fator unificador” na realidade requer uma padronização que o torne imediatamente reconhecível, e que, dados os processos históricos, esse padrão se estabeleceu como sendo o do homem branco, europeu, heterossexual. Qualquer um que prescindisse de alguma dessas partes integrantes do fator unificador estariam aquém da própria definição de ser humano. O pós-humanismo nasce para criticar essa noção, e é nesse contexto de ruptura que nasce o ciborguismo, com a publicação do Manifesto Ciborgue, de Donna Haraway.

O ciborguismo é uma corrente do pós-humanismo que defende que o ser humano é essencialmente... nada. Que não existe uma identidade unificadora para a humanidade porque, na essência, a identidade humana é uma construção. Assim como o ser da ficção científica que dá nome ao movimento, um misto de homem e máquina, Haraway, que era bióloga, defende que o ser humano é na realidade um híbrido de sua composição biológica (que por si já seria uma espécie de quimera) e de constructos que formam sua identidade, e que a falta de um conceito unificador é a unificação em si. O ciborgue – humano - não tem uma face, não tem uma identidade que o torne imediatamente reconhecível, porque é uma coisa que viaja por vários mundos, tem muitas formas. Ele não é nascido ou criado no sentido de receber essa identidade, esse corpo específico que não existe de fato, mas ele emerge do mundo capitalista militarizado, que está para o ciborgue-humano da mesma forma que a tecnologia e a engenharia estão para seu contraparte da ficção científica, imprimindo nele aquilo que virá a se tornar sua potente subjetividade sintetizada pela fusão de identidades exteriores (HARAWAY, 1985), e que, como veremos mais adiante, o dota de capacidade para minar o próprio sistema do qual emergiu, mas que o escraviza.

Ao assistir Branco Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós, podemos enxergar esse processo. Dois dos personagens principais, Marquim e Sartana, foram violentamente roubados da noção de que existia algo que os unificasse com seus colegas brancos que estavam com eles no baile do Quarentão no dia 5 de março de 1986, dando-lhes tanta legitimidade humana quanto dava a estes outros. Os policiais invadem a festa, com o grito de ordem “branco sai, preto fica!”, ou seja, brancos deveriam ir embora, enquanto os pretos ficariam para apanhar. Eles são segregados por suas diferenças e sofrem o massacre da força policial, que os destitui de ainda outro requisito para que se encaixassem no “fator unificador”: sua integridade física. Marquim se torna paraplégico, enquanto Sartana perde uma perna. O véu do humanismo lhes é tirado, deixando-os nos braços da única coisa que poderia vir depois: o pós-humanismo, a ideia de que não há nada que nos unifique. É assim que ambos tornam-se tanto ciborgues, aos olhos do ciborguismo, quanto pós ou trans humanos, na visão de outras correntes pós-humanistas, pois a partir daquele momento, ambos são, de fato, parte máquina, com suas próteses e cadeiras de rodas.

Mas é interessante observar que para os ciborguistas, o processo não para por aí. Como comentamos antes, o sistema que faz emergir os ciborgues é naturalmente enfraquecido pela existência dos mesmos. Pra entender esse conceito, vamos emprestar algumas ideias do anti-humanista Foucault, em especial, a ideia da disciplina e da biopolítica como instrumentos de manutenção de poder. Para Foucault, o biopoder e a disciplina são formas de governar a vida, que miram hegemonizar as massas, para que sejam úteis na produção e docilmente governadas. À partir do momento que passa a caber ao estado, ao poder vigente, o papel de manter a vida, garantir longevidade e saúde, assim como os processos de controle e vigilância da natalidade e da mortalidade, torna-se imprescindível ao indivíduo aceitar o acesso desse poder vigente a seu corpo e a sua forma de viver e de se disciplinar, o que também acontece através de instituições como o exército e a escola. À medida que o sistema - em nosso caso concreto através da polícia, que de acordo com Foucault, é parte essencial dos sistemas de disciplina mantenedores da lógica capitalista - deixa claro que um determinado grupo de pessoas - em nossa análise, os corpos pretos marginalizados da Ceilândia - não se adequa ao padrão humanista, que é por definição branco, masculino e heterossexual, o próprio sistema força esses indivíduos para fora da lógica do padrão unificador. Encontrando-se fora dessa lógica, eles são destituídos da sua noção de direito e de segurança de que o estado continua responsável e responsabilizável pela manutenção de seus direitos à vida. Eles estão, assim, conscientes do que Haraway chamaria de sua natureza ciborgue, de seu local de não-identidade, pelo menos dentro do conceito unificador humanista. Assim, o sistema do qual emergiram passa a ser algo a ser modificado ou destruído.

É a partir daí que vemos esse ciborgues, não só Marquim e Sartana, mas também o viajante do tempo Dimas Cravalanças, destituído inclusive de qualquer aspecto do que consideraríamos a identidade de um viajante do tempo, conduzirem suas epopeias individuais, mas que se cruzam.

Marquim, que mais tarde se une a Sartana, engendra seu plano de vingança contra Brasília, que é representante não só da estrutura de poder, enquanto capital federal, mas do próprio sistema de segregação. Os trabalhadores que construíram Brasília receberam a promessa de serem alocados na cidade, mas depois de finalizadas as construções, esses trabalhadores foram deslocados para as cidades satélites, como Ceilândia, que deveriam ser locações temporárias, mas se consolidaram como regiões periféricas, com pouca qualidade de vida. Os personagens que não têm um “passaporte” não podem sequer entrar em Brasília. Marquim, então, constrói uma bomba cultural, com músicas e sons das ruas de Ceilândia, que ele e Sartana pretendem detonar sobre o Congresso Nacional. Já Cravalanças está em missão, vindo do ano de 2070, buscando provas dos crimes cometidos contra o povo preto nas imediações de Brasília.

O filme culmina de um lado, com a chegada das provas dos crimes do Estado Brasileiro contra a população marginalizada, relatos de Marquim e Sartana, que de fato viveram o Massacre do Quarentão, além de fotos e excertos jornalísticos, e do outro, com a destruição de Brasília pela explosão da bomba cultural, – cena que é representada através dos desenhos de Sartana - que mais uma vez simboliza muito bem a natureza “montada” e heterogênea do ciborgue e suas armas. É ao som de “Bomba Explode” de MC Dodô, que nosso filme acaba, um belo ciborgue, visceralmente humano, entre documentário e ficção-científica.



Referências


BERTOLINI, Jeferson, “O Conceito de Biopoder em Foucault: Apontamentos Bibliográficos”, Natal: SABERES, 2018


HARAWAY, Donna J., “A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century, Nova Iorque: Routledge, 1991 (Trad. Bras. Tomaz Tadeu. In: HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari; TADEU, Tomaz, Antropologia do Ciborgue: As vertigens do pós-humano, Belo Horizonte, Autêntica, 2009, 2a ed.)


GUIGNION, David “Donna Haraway´s ‘A Cyborg Manifesto’”, 2020 https://www.youtube.com/watch?v=6dv8N1WYHkQ

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