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Cinema Brasileiro (a Independência e Suas Bordas)

  • camaraescurarevist
  • 24 de nov. de 2020
  • 7 min de leitura

Atualizado: 2 de dez. de 2020

Por Lucas Gonçalves Rangel


A primeira edição da Revista Câmara Escura não poderia levantar outro tema: o cinema independente brasileiro é mais do que uma obrigação de debate, é nossa própria essência. Como alunos de audiovisual que nos unimos para criar conteúdo e transmiti-lo, enfrentando os obstáculos do mercado que dificultam o acesso do público ao mesmo, temos que, em primeiro lugar, saber o espaço que ocupamos dentro dessa estrutura e isso é discutir o cinema independente nacional.

Em uma de suas palestras, certa vez, o grande escritor, Ariano Suassuna, contou uma de suas muitas anedotas, que se desenrolou durante sua visita em uma escola particular. Para quem não conhece sua obra, é importante frisar que Ariano talvez seja um dos maiores defensores da língua portuguesa: segundo ele, nós deveríamos utilizar menos palavras estrangeiras que possuam sinônimos na nossa língua - e quando fizéssemos, deveríamos pronunciar tais palavras a partir dos fonemas do português. Ao chegar na tal escola ele encontrou uma faixa que convidava os alunos para uma “Aula Show do Escritor Ariano Suassuna” e ao ver aquilo, disse que só ministraria o evento se a faixa fosse retirada. Ele seguiu dizendo que não dava “aula show” e sim “aula espetáculo”, pois “show”, na terra dele, era uma expressão usada para espantar galinha.

Essa anedota serve para repensarmos o uso automático que fazemos de palavras e conceitos vindos de outras línguas: no caso do cinema, especialmente o francês e o inglês, como, por exemplo: cinéma vérité, mise-en-scène, star-system, cinema indie, etc. Esse último é uma abreviação de independent. Tal termo foi traduzido literalmente para português como “cinema independente” e é a ele que nos ateremos a seguir, problematizando-o a partir de vários eixos como o econômico, o teórico, e as implicações práticas de seu uso. Também tentaremos propor uma nova forma de divisão a partir do conceito “Cinema de Bordas”, cunhado pela professora, pesquisadora e escritora capixaba, Bernardette Lyra. Vale ressaltar que Bernardette já foi coordenadora da universidade que possibilitou essa revista, além de ter ajudado a fundar e estruturar o Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Infelizmente, a mesma não faz parte do corpo docente - assim como vários outros mestres que foram vítimas de sucateamento nos últimos anos.

O termo Cinema Independente foi objeto de muitas pesquisas acadêmicas, trabalhos curatoriais e até de uma busca por uma estética própria. Todo esse arcabouço teórico certamente nos ajudou a formatar o que hoje entendemos por tal termo. Apesar disso, por enquanto nos basta a definição de independência contida na maioria dos dicionários: a palavra vem do latim pendere que significa estar preso, antecedida pelo prefixo de que significa, por sua vez, de cima para baixo. Entretanto, a maioria dos dicionários também traz significados menos ligados ao campo físico material e mais ligados ao subjetivo e até à política. Um dos sinônimos de dependência pode inclusive ser colônia, ou parte anexa, acessória. Ou seja, depender significa estar pendurado a algo. Mas seria independente apenas o contrário disso? Tudo que não se prende a algo que esteja numa posição superior pode ser considerado independente?

A maioria dos teóricos do cinema tendem usar dois critérios para definir se um filme é independente. O primeiro é o aspecto material e o segundo é aquele ligado ao conteúdo e/ou sua estética. Para serem considerados como tal, pelo menos pela maioria dos estudiosos da área, os filmes denominados “indies” têm que cumprir ambos. Segundo Emanuel Levy, “Idealmente, um indie é um filme de baixo orçamento com um estilo corajoso, sobre um assunto inusitado, que expressa a visão pessoal de seu diretor” (LEVY, 1999, p. 2).

Em outras palavras, é preciso ter baixo orçamento ou, pelo menos, não se ligar ao sistema pré-estabelecidos pelos grandes estúdios e produtoras. A questão que fica é: o que pode ser considerado um baixo orçamento para o cinema nacional? Podemos responder essa pergunta de duas formas: levantando comparações internas ou nos situando dentro da produção internacional. De todo modo, um filme brasileiro cuja produção tenha custado alguns milhões de reais dificilmente poderia se encaixar na conceituação de cinema independente. Mesmo sendo considerado um grande orçamento se comparado a maior parte da produção nacional, em quase nada ele se diferenciaria em termos de distribuição. Isso se dá devido ao processo de colonização, da qual Glauber Rocha se referiu no Manifesto da Estética da Fome:


“A América Latina, inegavelmente, permanece colônia, e o que diferencia o colonialismo de ontem do atual é apenas a forma aprimorada do colonizador: e, além dos colonizadores de fato, as formas sutis daqueles que também sobre nós armam futuros botes.”


Ou seja, mesmo com um orçamento infinito não conseguiríamos reproduzir aqui a tecnologia utilizada em Hollywood, pois essa é uma questão estrutural, impossível de se criar durante o tempo de uma produção cinematográfica. Mesmo que conseguíssemos, o filme, ainda assim, teria imensa dificuldade para ultrapassar a bolha dos monopólios de distribuição, que muitas vezes estão nas mãos de poucos estrangeiros. Ainda assim, todas essas dificuldades são o que Glauber queria dizer com “Colonialismo de Ontem”: a monopolização do capital e sua posse na mão de poucos estrangeiros além da defasagem técnica e tecnológica.

Ainda dentro do critério material muitos estudiosos também apontam a questão dos grandes estúdios e produtoras. A problemática desse tópico é a pressuposição da impossibilidade de fuga dos padrões impostos pelas grandes produtoras à maioria das obras que inundam o circuito comercial. A questão que fica é: seriam essas formatações que fazem quase todos os filmes (que vemos sendo exibidos nas grandes salas de cinema do circuito comercial) se parecerem muito uns com os outros, uma regra imposta ou um costume? Alguma produtora brasileira pode se considerar grande em comparação às americanas?

A última parte do trecho citado do Manifesto da Estética da Fome, em que Glauber aborda as formas aprimoradas e mais sutis do novo colonialismo, nos leva para o segundo critério de avaliação de um filme independente: o conteúdo e sua estética. O fato de a estética dos filmes nacionais, de maior bilheteria, não ser muito diferente da Hollywoodiana, nos põe a refletir sobre sua causa. Seria a perduração dessa situação econômica que nos aflige, a causa de uma aculturação que transpassa nossos corpos e nos leva a considerar no presente, quase que como instintivamente, as formas predefinidas, vindas de Hollywood, como boas e belas? Seria essa a causa de uma reprodução inconsciente dessas formas, mesmo quando tentamos expressar em filmes nossa liberdade criativa? É possível livrar nossa forma de enxergar o mundo dessa influência que as imagens dos grandes estúdios estadunidenses sempre tiveram sobre nossos sentidos? Ou o que nos resta é apenas a contravenção de tais regras, nos fazendo ir contra o sistema mesmo que para isso tenhamos inerentemente que estar dentro dele? O conceito de autoria, muito utilizado para distinguir os tais filmes indies, pouco poderia nos ajudar a responder tais questionamentos. Na maioria das vezes o que se chama de filme autoral se caracteriza pela presença, bem estruturada, da linguagem cinematográfica já consolidada de maneira a ressaltar traços semelhantes entre um filme e outro, do mesmo diretor, ao mesmo tempo que o diferencia da estética de filmes de outros autores. Ou seja, aqueles que realmente estão à margem do sistema produtivo, poucas chances teriam de se enquadrarem como tal visto que na maioria das vezes não possuem o conhecimento acadêmico necessário para isso.

Para nos ajudar nessa difícil tarefa de diferenciar quais filmes apresentam uma forma e conteúdo que se opõe àqueles, de maior prestígio, produzidos pela indústria cinematográfica, podemos usar o conceito de Cinema Periférico de Bordas, abordado no ensaio de Bernardette Lyra, publicado pela Escola Superior de Propaganda e Marketing. Este conceito compreende produções que são feitas por pessoas autodidatas, em regiões geográficas periféricas ou interioranas, excluindo aquelas dos grandes centros urbanos. Segundo a autora, ele se difere do Cinema Periférico na medida em que tem como intuito o lazer e não o protesto. Sendo assim o Cinema de Bordas se encontra no limite entre o que pode ser compreendido como cultura popular (ou folclore) e as produções midiáticas de maior prestígio, conseguindo por isso, muitas das vezes, alcançar grande parte da população dos espaços que habitam, na medida que reproduzem as formas imagéticas da grande mídia para retratar aspectos particulares de determinada cultura, e assim alçá-los a possibilidade de assimilação universal.

Dessa maneira, ao analisarmos tanto os conceitos de Cinema de Bordas como o Cinema Independente, percebe-se em comum o baixo orçamento. Entretanto, o Cinema de Bordas, segundo Lyra, no ensaio citado acima, vai além:


“(..) observando-se não apenas os parcos investimentos econômicos e esforços pessoais dos realizadores, mas também recursos técnicos precários, como a utilização de câmeras baratas, atores não profissionais, cenários toscos ou naturais, além de circulação caseira ou em salas quase sempre improvisadas”


Logo percebe-se que no aspecto material esse conceito é mais restrito do que o do Cinema Indie, e que essa restrição se dá, em sua maioria, pela dificuldade de produção longe dos grandes centros urbanos.

Contudo, a diferença desses conceitos não se dá apenas no campo material, mas mais ainda na estética e no conteúdo cinematográfico. Enquanto o Cinema Independente pressupõe um certo afastamento das formas preestabelecidas para dar lugar a um suposto experimentalismo autoral, o Cinema de Bordas abraça a influência não só do cinema mainstream, mas de todas as formas imagéticas midiáticas que nos cercam, principalmente a TV, numa tentativa de quebrar o paradigma da dificuldade que os filmes independentes têm de serem consumidos pelas massas.

Por fim, percebemos que esses termos apresentam diferenças bem marcantes, mas que também possuem intersecções entre si e que para além delas o menos conhecido, Cinema de Bordas, pode ser de grande utilidade na hora de diferenciarmos os filmes que se encontram em oposição aos dos grandes estúdios e/ou que são consolidados pela crítica, daqueles que realmente são feitos à margem de qualquer facilidade técnica ou tecnológica distribuídas tão desuniformemente entre os produtores de filmes.



Bibliografia:


LYRA, Bernardette. Cinema Periférico de Bordas. Revistacmc.espm.br. Disponivel em: http://revistacmc.espm.br/index.php/revistacmc/article/download/145/145 Acesso em: 13/11/2020


LEVY, Emanuel. Cinema of outsiders: the rise of American independent film. New York: New York University Press, 1999.


ROCHA, Glauber. Uma Estética da Fome. 1965. Disponível em: https://hambrecine.files.wordpress.com/2013/09/eztetyka-da-fome.pdf . Acessado: 13/11/2020


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