O Estado de Inocência em "A Caça" (2012) e "Aos Teus Olhos" (2017)
- camaraescurarevist
- 24 de nov. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 2 de dez. de 2020
Por Lucas Behrmann
É princípio fundamental do direito penal e constitucional que um indivíduo seja considerado inocente até que este seja julgado e haja total conclusão do processo legal, cabendo ao acusador prová-lo culpado e não ao réu provar-se inocente. O enredo do longa-metragem nacional Aos Teus Olhos (2017) – dirigido por Carolina Jabor (Boa Sorte) e baseado na peça de teatro catalã O Princípio de Arquimedes – e do dinamarquês A Caça (2012), dirigido por Thomas Vinterberg (Festa de Família, Submarino) dialogam justamente com esse princípio dentro da sociedade contemporânea, guiando o espectador a reflexões semelhantes através de ferramentas e elementos narrativos quase idênticos.
Em Aos Teus Olhos, a trama se desenrola em volta do protagonista Rubens (Daniel de Oliveira), um professor de natação para crianças que num dado momento é acusado pelos pais de Alex (Luiz Felipe Mello), um de seus alunos favoritos, de ter agido de “maneira inapropriada”. De modo semelhante, em A Caça temos Lucas (Mads Mikkelsen), um professor do jardim de infância que também se vê vítima de uma acusação pelo suposto abuso de Klara (Annika Wedderkopp), sua aluna e filha de seu melhor amigo Theo (Thomas Bo Larsen). Em ambos os casos, os protagonistas são retratados como pessoas dóceis e que mantém relações afetivas bastante carinhosas e brincalhonas com seus alunos – o que em um primeiro momento é apresentado como uma virtude será revertido em um comportamento impróprio e condenável na visão da sociedade.
A maior diferença entre as películas talvez seja dada pelo contraste do caráter apresentado pelos protagonistas: Rubens no início da película realiza comentários sexualizando alunas de 15 anos e chega até mesmo a recusar uma proposta para assumir uma turma com alunas adolescentes por não se sentir seguro de que controlará seus impulsos sexuais; já Lucas é apresentado como um homem solitário e tímido, porém íntegro, que luta para superar um divórcio e conseguir a guarda de seu filho Marcus (Lasse Fogelstrøm). Enquanto que em Aos Teus Olhos tudo é relatado indiretamente no decorrer da trama através de diálogos entre os adultos, nunca pela visão de Alex, em A Caça Vinterberg fornece ao espectador uma cena do relato exato de Klara à coordenadora da escola, embora em ambos os casos os rumores tenham início com as próprias crianças supostamente vitimadas.
A principal consequência dessas diferenças é que no caso de Aos Teus Olhos o público é sugerido a duvidar de Rubens e se sente inseguro em assumir qualquer posição sobre o caso, enquanto em A Caça a inocência do protagonista já foi garantida e confidenciada ao espectador. A partir disso, são oferecidas duas respostas a um desenvolvimento semelhante de enredo: enquanto os rumores (pois não há provas) se intensificam exponencialmente e as personagens são expostas a situações cada vez mais humilhantes, agressivas e cruéis, A Caça provoca empatia por Lucas e indignação frente às ações da comunidade, à medida que Aos Teus Olhos incita a dúvida e a conivência.
De toda forma, ambas as películas elaboram narrativas que buscam exemplificar a velocidade e facilidade com que a sociedade atual rompe o princípio da não culpabilidade de um indivíduo, submetendo-o, sem provas, a níveis extremos de exílio social e punições arbitrárias que lembram a barbárie medieval – como o que ocorre com o Lucas na cena onde é expulso violentamente do mercado, ou quando o carro de Rubens é pichado com a palavra “pedófilo”. É uma verdadeira subversão de direitos onde o acusado, agora, é previamente tratado como culpado e se vê em uma luta para provar sua inocência. A fala “pura e inocente” da personagem da criança vitimada é logo recebida como verdade incontestável e desqualifica qualquer tentativa de defesa dos acusados sendo utilizada como ferramenta para intensificar o absurdo dessa atmosfera subvertida.
Em Aos Teus Olhos, o núcleo do enredo é o personagem de Rubens em si. Os rumores se desenvolvem rapidamente através das redes sociais e ganham espaço e força através dessas ferramentas de forma virtual e simbólica, alheia a Rubens – aquele que é mais afetado – e a quem o processo de digestão da informação é lento e as consequências são concretas. A obra se conclui quando, totalmente desorientado, Rubens se vê privado de sua dignidade e seu espírito está dilacerado – seu semblante perturbado é a última imagem apresentada e nada mais precisa ser dito.
Já Virterberg faz questão de descentralizar o absurdo da atmosfera fabricada ao longo da trama e ir além da destruição de Lucas. Em A Caça existe reconciliação, mas uma reconciliação aparente (tanto do personagem quanto da atmosfera): Lucas retorna ativamente à sociedade, com Marcus ao seu lado, comemorando a chegada da maturidade ao receber de seu tio uma arma de caça. Celebram caçando. Lucas está bem, sua imagem e status dentro da comunidade estão recuperados, até que o aspecto de reconciliação é bruscamente interrompido pelo som seco de um tiro que, ao que tudo indica, estava endereçado a Lucas. A luz do sol impossibilita a identificação do atirador (de forma simbólica, pois aqui o indivíduo personifica a sociedade) que, após algum tempo ainda com a arma apontada para o protagonista, foge correndo pela floresta. Aqui o diretor deixa sua mensagem principal não com o falecimento de seu protagonista, mas com a morte total e brutal do estado de inocência do mesmo. Uma vez julgado culpado e repelido pela sociedade, Lucas – que sempre foi inocente – perdeu para sempre um de seus direitos primordiais.
As narrativas dialogam ao explorar o crescimento acentuado de uma postura punitivista em nossa sociedade e as consequências negativas desse fenômeno para os indivíduos que a constituem e os valores que a estruturam, utilizando a arte como instrumento para trazer à luz um comportamento que precisa ser debatido e repensado com urgência. De forma semelhante a Dom Casmurro, nunca saberemos se Rubens de fato abusou ou não de Alex, apesar das “evidências” circunstanciais habilmente inseridas no enredo (como a sunga no armário ou o fato do protagonista namorar uma ex-aluna) para embasar a postura condenatória das personagens – e do público. Não é por acaso que o título em inglês dado à obra seja Liquid Truth (que pode ser traduzido como “Verdade Líquida”), ou mesmo que o título original seja Aos Teus Olhos: até que ponto as verdades e o conceito de justiça adotados pelas personagens não são fluídos e dependentes de um referencial? Para a sociedade punitivista pouco importa a verdade, basta encontrar um culpado (de preferência rápido) e que a punição seja executada, nem que seja pelas nossas próprias mãos.
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