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Cinereciclagem: Conversa com Joel Pizzini

  • camaraescurarevist
  • 24 de nov. de 2020
  • 8 min de leitura

Atualizado: 2 de dez. de 2020

Por Ulisses Forattini



“É na incapacidade de copiar que o brasileiro cria a sua obra

– Paulo Emílio Salles Gomes.


Documentarista, Vídeo-Ensaísta, Cineasta Experimental

Joel Pizzini é um realizador do Cinema e da Televisão, é pesquisador e trabalha com restauração. Realizou diversos documentários premiados como Caramujo-Flor (1988), 500 Almas (2007), Olho Nu (2012) e Mr. Sganzerla (2012), sempre atento a questões como arte e cultura em suas propostas. Atualmente, faz parte do projeto de recuperação da obra de Fernando Coni Campos, um dos homenageados pela 44ª Mostra, e dá aulas. Já fez curadoria para Mostras de Cinema, uma dela, inclusive, de John Cassavetes, de exibição com cópias originais em película. Segundo Pizzini, o público saía contagiado pelo cineasta: “Eu vou fazer um filme! Eu posso fazer um filme!”.

Como alguns cineastas que experimentam, Joel refina suas escolhas de direção repensando o processo de fazer seu cinema, frequentemente associado ao filme-ensaio. O realizador teoriza uma prática a qual chama de Cinereciclagem: o uso de imagens e sons já disponíveis (de filmes, de televisão e de outras mídias) para ressignificá-las através de suas combinações, e daí realizar novos filmes. Como cita o teórico Guy Debord, “O mundo já foi todo filmado, só falta ser transformado”.

Essa foi a única definição de Cinereciclagem. Não é uma vanguarda ou um gênero, mas uma escolha, e escolhas fazem parte dos deveres de cineastas. Ao longo da conversa, Pizzini ressuscita uma série de filmes, traz discussões plásticas da imagem e comenta sobre diferentes produções das quais participou, citando frases de variados artistas, mostrando o seu repertório faraônico. Como dizia Bertold Brecht: “As coisas pertencem a quem as melhoram”.

Joel Pizzini durante as filmagens de 500 Almas, com o operador de câmera Hélcio Nagamine - foto de Izan Petterle


Glauces – Estudo de Um Rosto (2001)


“Alguém disse por aí... que na literatura, há apenas 3 temas: de onde a gente veio, aonde a gente vai e o quê a gente tá fazendo aqui” - Joel Pizzini


Glauces é um filme que utiliza imagens da atriz Glauce Rocha em diferentes papéis na televisão e no cinema. A introdução do curta-metragem é por um poema escrito por Joel Pizzini e Sérgio Medeiros, recitado por Paulo Autran: “Glauce é pureza, Sara, Soraia, Helena, Frida, Dorina, Neusa Sueli. Glauce é Rocha ”.

Há uma liberdade em ressuscitar Glauce através da narrativa elaborada com a montagem: diálogos em off dispostos sobre planos de falas inaudíveis; repetição de planos iguais da mesma ação e espaço; planos de cenários diferentes com temas parecidos (Rocha abrindo portas, seus olhares, correndo atrás de alguém, interagindo com personagens em offscreen); reversão da velocidade na filmagem; e colorização de cenas preto-e-branco, criando outras versões das cenas para outros tons monocromáticos. A mise-en-scène não é convencional, subtrai-se imagens de filmes já feitos, frequentemente diminuindo o tempo e escolhendo planos apenas à atriz, para criá-los como próprios do documentário. Vez ou outra, nos perdemos ali.

Tem a Glauce dirigida por Glauber Rocha (Terra em Transe, de 1967), Ruy Guerra (Os Cafajestes, de 1962), Braz Chediak (Navalha na Carne, de 1969). Agora, Glauce é dirigida por Joel Pizzini, mesmo atriz e diretor não terem se encontrado. No começo do curta-metragem, há Glauce com Jardel Filho, abraçados. Ao encostar no ombro de Jardel, ela cochicha em seus ouvidos: “a política e a poesia são demais para um só homem”. Em corte seco, Jece Valadão agride Glauce e obriga-a a bater palmas.

A partir dessa justaposição, cria-se o símbolo do contraste entre as duas posições em que Glauce se movimenta, no amor e na dor. Se entendermos esse filme através da transparência da ficção, supomos que ambas, a Glauce que ama e a Glauce que sofre, são a mesma personagem. Há vários outros momentos dos diferentes duplos da atriz olhando para o mesmo sentido para onde outra Glauce caminha – uma sobe as escadas e outra espiona o topo das escadas, uma nos encara e outra vira seu rosto, em vergonha.

A adulteração dos planos realça a força expressiva da atriz. Os sons agudos de suas risadas tomam relevo, como em uma outra cena em que debocha de Jece Valadão, se vingando dele. “Bagaço... lixo dos lixos... galinha... coroa... eu sou tudo isso... mas você vai ficar comigo”.

“A poesia não tem sentido. Palavras são inúteis.”


Quando Joel Pizzini foi fazer Glauces, soube por acaso de treze minutos de material de Terra em Transe que Glauber Rocha não usou. Um material belo, bem enquadrado e pronto para ser usado, na lata de lixo da história de cinema. O material que não serviu a Glauber Rocha é um tesouro para Joel Pizzini, colocando em contexto em Glauces – Estudo de Um Rosto.

Quando experimentamos esse filme, como diria Adirley Queirós, sentimos que é um documentário que mostra a versatilidade da atriz - justificando a proposta da Cinereciclagem que se assume aqui. Ao mesmo tempo se parece ficcional, por ter uma consciência das cenas de melodramas brasileiros famosos, principalmente do lado da dor de Glauce. É a reciclagem, também, de Antonioni e Resnais, e há uma coreografia intencional que se distancia da linearidade narrativa, constituindo o espírito da atuação da atriz. A ficção e o documentário se fundem para existir apenas o cinema.

Se expandirmos a Cinereciclagem para a ficção, poderemos ter o nosso filme em mãos, basta pesquisarmos na internet o espaço, os cenários, os sons... às vezes, até a atriz que queremos. Restaria apenas a montagem.


Mar de Fogo (2014)


Seria previsível essa questão da voz de Deus, que fala “Mário Peixoto escreveu Limite (1931) e foi produzi-lo”. O processo artístico é trabalho, esforço, suor, dúvida, procrastinação, pesquisa, revisão e decisão. Escolher a ideia resumida de que fazer um filme é pensar e escrever por um tempo “x” é se afastar da realidade artística. Como é cada insight e cada realização? Ou melhor, como é nossa mente durante o processo artístico?

Revisitando diferentes planos da obra prima nacional, Mar de Fogo transcorre imagens daquilo que seria a intuição de Peixoto. A voz de Mário frequentemente descreve a emoção, a paisagem, a natureza, o mar de fogo e a mulher agarrada no pedaço de um barco naufragado. Optando por palavras, versos, recortes do mundo, os diferentes planos de Mar de Fogo são também os de Limite alterados com forte contraste e efeitos de cor, e ainda mais carregados pela voz do cineasta.


Processos de Pizzini

“Dirigir é dirigir-se”.

– Robert Bresson


Cada vez mais que se passam as experiências, mais precisamos abraçar a imprecisão das verdades que os padrões nos impõem. O pensamento estratégico de colar imagens umas às outras tende a ser associado ao plágio. Quando se é releitura, é precisão.

O Enigma de Um Dia (1996), trata de uma precisão da arte entrando na vida de um segurança, o ator Leonardo Villar. Depois de encarar um quadro de Giorgio de Chirico (que não vemos de início), o segurança vê o ambiente à sua volta transformado. Vemos o mundo mudar por causa da pintura: as perspectivas e construções são dominadas por retas e curvas dinâmicas, com perspectivas quase irreais. Uma passarela parece metros acima do normal, uma rua fica mais larga e maior e as pessoas que caminham são diminuídas, o céu fica azul de apenas uma cor e sem nuvens, as plantações viram traços de verde e amarelo sem diferenciação. Os temas dos granitos, tijolos, colunas, estátuas e pórticos comprimem os espaços.

Na época do desmonte do audiovisual, um projeto de longa-metragem de Pizzini foi abortado, então o realizador migrou para a televisão. Fez filmes-ensaios de baixo orçamento para o Canal Brasil, conseguindo driblar as dificuldades de se conseguir recurso para vender outros projetos. Com o apoio do canal, conseguiu fazer Um Homem Só (2000), com o Leonardo Villar, grande ator brasileiro.

A produção do filme sofreu com a falta de distribuição para fazer a obra sobre o ator acontecer. A limitação criativa logo se converteu em triunfo estético: em vez de filmar em várias locações externas, de acordo com a proposta inicial, por que não se concentrar no apartamento do ator e criar ali o estúdio do documentário? Mostrar o ator fora do apartamento seria apenas pelos filmes e gravações já filmados e presentes. Então Um Homem Só foi realizado e estreou no canal Brasil.

Então, como cineasta, a natureza pode operar do nosso lado. Temos o filme na cabeça e podemos adaptá-lo. Por causa disso, não podemos nutrir o perfil perigoso do cineasta que bate o pé e grita com sua equipe. Isso, na verdade, estaria relacionado à insegurança da produção ser frustrada pelos imprevistos. Não nos esqueçamos da menção importante de Jorge Furtado: “o estilo de um cineasta é totalmente criado a partir do tamanho de sua produção”.

Durante a palestra da Semana PlayREC, Joel Pìzzini fala sobre diversos assuntos. Não há algo firme e fechado, uma vez que ele também é professor: ele sugere e estimula o lado cineasta de cada um, nunca ensinando fórmulas e questões. É também um cineasta versátil que driblou uma série de dificuldades para conseguir realizar seus filmes. Pesquisou e filmou os Guatós, uma Tribo que vive no pantanal mato-grossense dada como extinta na década de 60, e buscou representar a cultura do povo e sua comunicação em 500 Almas. Recriou Sganzerla novamente como um lançamento de cinema em Mr. Sganzerla. Revitalizou o fluxo louco, político e revoltado de Glauber Rocha em Glauber Rocha: Retratos da Terra (2004).

A frase que mais definiu Joel Pizzini foi o elogio de uma amiga que não trabalha com cinema. Como relata na palestra, foi uma bióloga, que sintetizou a busca de Pizzini em seus filmes: “Não entendo seus filmes, mas nunca se sabe a imagem que vem depois”.


Cinema é, obrigatoriamente, o registro de seu tempo


A conversa de linguagem, experimento e vivência dá lugar à metafísica. Algumas obras audiovisuais compõem a forma de outros filmes e séries exibidos atualmente – tudo se parece. Ao citar o filme Memória (1990), de Roberto Henkin, Pizzini alude aos ciclos temporários que passam a humanidade e o Brasil.

“Mas num país de Jânio Quadros onde a obsolescência não só é programada como funciona, o novo ainda parece ser a última novidade do mercado.”

A vassoura, o símbolo da limpeza, sendo produzida e multiplicada pela indústria, em forte contraste com as películas velhas ora queimadas ora transformadas. A vassoura varrendo o cinema, varrendo a memória.

A fartura da memória nos documentários é tanta, que devemos assumir que as épocas de vida seguem ciclos. Não dá para evitar. Na arte, na filosofia, na tecnologia, alguém vai tentar algo que já foi tentado ali atrás, e alguém irá fazer algo sujo que deu muito certo há muito tempo. Pensando dessa forma, será que podemos prever o futuro apenas recombinando diferentes filmes que já vimos? Será que o futuro já foi filmado? Cabe aí o encontrarmos.


Novas Cinereciclagens

“Se você tiver dúvidas em escrever um roteiro, vá em Shakespeare ou na Bíblia”

- Glauber Rocha


No que se trata de um mundo repleto de imagens correndo por todo canto, é com facilidade que as mesmas encontram nossas telas. Basta pesquisar que é possível encontrar o que se busca. “O tema vem depois do poema”, parafraseando Leminski. A imagem delimita um conteúdo e é composta por uma plástica, sua linguagem. Todos os tipos de imagens são plásticas. Até aquelas que possuem apenas palavras – as tipografias exprimem ideias intrínsecas aos seus desenhos. A imagem está em todo lugar e a Cinereciclagem também.

Quem viria a pensar por essa multiplicidade do século passado seria Marcelo Masagão, com Nós que Aqui Estamos, por Vós Esperamos (1999). Como o próprio autor defende, o filme é uma livre associação de “material de arquivo”, preparando um diário do milênio anterior e aguardando o novo que estava por vir. Cinema como cápsula do tempo do século passado, mapeamento da identidade humana.

Há uma série de artistas juntando imagens e fazendo videoclipes – Cassius em Go Up (2017), Coldplay em Up & Up (2016). O realizador Ben Aston criou o clipe Nangs (2016), de Tame Impala, a partir de vídeos clichês do gettyimages e o stock footage. Há os mais experimentais, como os videoclipes da banda eletrônica escocesa Boards of Canada, de Michael Sandison e Marcus Eoin: assumindo um critério de reutilização e adulteração de gravadores, dispositivos, mídias e programas das décadas de 50 a 80, as músicas do dueto são eletrônicas, com constante uso da remixagem e repetição de samples. A diferença aqui é tentar representar o passado, estendendo um subgênero da música eletrônica. Toda música tem um som (ruído ou harmonia) que se faz familiar. Considerando que todas as imagens de arquivo estadunidenses são de uso aberto, os videoclipes fazem livre associação com as músicas do dueto.

Os audiovisuais criados pelos usuários das redes são braços dessas transformações: o TikTok estimula o uso de imagens na criação de edições ao gosto dos fãs. Pela multiplicidade dessas imagens, criam-se novos artistas (e também subcelebridades). O facebook lucra com as compilações criativas do seus usuários. Vídeos tolos como jovens justapondo músicas de funk com cenas de filmes famosos ressignificam o próprio sentido das obras, provocando uma forma criativa de humor. O meme a partir da construção plástica.

Sem esperarmos pelas condições ideais, podemos fazer filmes no nosso computador com o que quisermos.




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