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Crítica - "Zona Árida" (2019)

  • camaraescurarevist
  • 24 de nov. de 2020
  • 3 min de leitura

Atualizado: 2 de dez. de 2020

Por Thiago Winter


O documentário de Fernanda Pessoa, Zona Árida (2019), traz uma experiência cativante e reflexiva. Com uma narrativa extremamente pessoal e ao mesmo tempo coletiva, e com entrevistas simples, porém generosas, não apenas somos convidados a entrar no mundo da cidade mais conservadora dos Estados Unidos, como também somos colocados numa perspectiva que é comum a todos nós: a latina, ou a não estadunidense.

A estratégia é simples, mas precisa. Com cenas que mostram a cidade, documentos e fotos da universidade onde Fernanda estudou quando fez seu intercâmbio 15 anos antes, tudo acompanhada de uma voz off que recita uma espécie de “carta” para a Fernanda do passado, o filme já se coloca em um lugar experimental e incomum, ao passo que o espectador tem acesso a essa perspectiva tão particular da cineasta. Da metade do filme em diante é como se tudo se transformasse, pois a visão se torna algo mais coletivo e focada na cidade, em seus personagens e o que faz deles integrantes da cidade mais conservadora do país. Mesmo que a divisão entre as duas facetas da obra seja tão visível, é igualmente orgânica, pois a diretora faz questão de nos colocar em seu próprio lugar para que a discussão que segue faça maior sentido para nós e para que nos sintamos parte daquilo. É inevitável a comparação com Democracia em Vertigem (2019), de Petra Costa, que faz o caminho contrário.

Existe experimentalismo já no primeiro aspecto do filme: a quebra do protagonismo. Somos o espectador ou somos Fernanda? No presente ou no passado? Talvez os três ao mesmo tempo: somos o público que investiga, a intercambista e a autora da carta. E este “triplo protagonismo” não é, de forma alguma, um problema, pelo contrário: ao acompanharmos a jornada da Fernanda de 15 anos na cidade de Mesa, identificamos toda a expectativa que a experiência carrega, afinal a maioria de nós consumimos, em algum grau, o boom do cinema de colegial estadunidense, toda essa mercadoria enorme, múltipla, que é o American Way of Life tão exaustivamente retratado não só nesses filmes como na maioria dos filmes dos Estados Unidos. Parte de nós tem um certo desejo de estar em um desses filmes, com uma vida tão perfeita, algo que é comum à intercambista, como a carta deixa claro. E é o conjunto carta-narradora que nos dá a segunda face dessa expectativa: a decepção. O desmoronamento da aparência narrado pela voz off em tom sentimental e íntimo, pois se trata da mesma pessoa, consegue nos afetar justamente pela identificação, feita simultaneamente. A carta é para a Fernanda do passado e, neste momento, somos a Fernanda do passado. É dessa forma que ganhamos uma perspectiva mais coletiva da experiência lá na frente, compreendendo o confronto da intercambista com uma realidade xenofóbica e racista. Não se enganem: aqui no Brasil podemos ser uma variedade de etnias, mas nos Estados Unidos nós somos latinos. Estrangeiros. E é fazendo com que nos entendamos latinos que Pessoa nos leva ao inevitável confronto: o conservadorismo em Mesa.

Que ano interessante para trazer essa discussão. O assunto é dolorosamente pertinente agora que estamos assistindo à ascensão da extrema direita no mundo e ainda de camarote aqui no Brasil. Mas enquanto aqui o presidente e seus seguidores trazem um conservadorismo escandaloso e trapalhão, em Mesa vemos um lado mais sutil e, talvez, mais perigoso da ideologia. O filme foi gravado em 2016, antes da eleição de Trump, e finalizado recentemente, enquanto vemos uma provável reeleição, e as entrevistas deixam claro o porquê. Elas são provocativas, mas não agressivas, com perguntas simples e quase ingênuas, deixando os entrevistados numa posição reflexiva e sem acionar seus dispositivos de defesa, nos levando a destinos surpreendentes, como o fato de não saber o que faz de alguém americano, mesmo se fazendo tanto esforço para se identificar como um, no modo geral. Existe um respeito muito bem vindo e uma sensibilidade para que aquelas pessoas não se tornem caricaturas para nós, e para que sejamos apresentados não só à “entidade” conservadorismo mas aos seres humanos, os residentes conservadoras de Mesa, com suas contradições e seu humanismo, ao senhor que a acolheu e possui uma coleção gigantesca de armas, a mulher que lhe oferece biscoitos, ao latino que mostra xenofobia. Ao esforço de se proteger as “raízes” do país, seus valores, seu mito de criação retratado nos filmes western, que serviram de referência para a fotografia do filme, um gênero “essencialmente americano”.

Em sua obra, Fernanda Pessoa experimenta, invoca e provoca: o que é ser brasileiro nos Estados Unidos? O que é ser não estadunidense (ou, como diriam lá, não americana(o))? O que é ser latina(o)? O que torna Mesa a cidade mais conservadora dos Estados Unidos? A busca por alguma dessas identidades talvez seja a verdadeira protagonista de Zona Árida.


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