Fernanda Pessoa: Uma Reflexão Sobre o Presente com as Lentes do Passado
- camaraescurarevist
- 24 de nov. de 2020
- 6 min de leitura
Atualizado: 2 de dez. de 2020
Por Thiago Winter
No dia 13 de outubro, a Semana PlayRec recebeu na palestra Novas Realizadoras a cineasta Fernanda Pessoa, diretora do longa Histórias que o nosso cinema (não) contava (2017), que está na Netflix, para falar sobre seu mais recente filme Zona Árida (2019), um documentário sobre a cidade considerada a mais conservadora dos Estados Unidos, Mesa, no Arizona, lançando um olhar para seu passado como estudante de intercâmbio na mesma cidade, 15 anos antes.
Fernanda nos conta que a ideia de fazer o filme nasceu antes mesmo de terminar o documentário anterior, no momento em que viu em uma rede social uma postagem do homem que foi seu host, isso é, que a acolheu em sua viagem de intercâmbio 15 anos antes, orgulhando-se da notícia de que Mesa havia sido considerada a cidade mais conservadora dos Estados Unidos. “Não estou surpresa, mas agora tudo faz sentido”. Ela enviou mensagem de texto para seus conhecidos da época os convidando para entrevista e organizou uma equipe pequena com Rodrigo Levy, Mari Nagem e o estadunidense Corbin Billings para ir até Mesa por um mês. “Eu achava que esse filme era um Western de vingança, a vingança do contexto; todo esse contexto que eu não entendia quando tinha 15 anos”. A diretora afirma que a referência para a fotografia do filme são os filmes western, especialmente os gravados no estado do Arizona.
Ela conta que foi durante a montagem, realizada no seu tempo livre enquanto lidava com a distribuição do Histórias que nosso cinema (não) contava, que ela descobriu muito do que o filme acabou sendo. A voz off, por exemplo, foi uma das últimas coisas incluídas no filme. “Quando eu fui filmar, eu não sabia, por exemplo, se eu era uma personagem ou não”. Foi um processo longo, que começou em 2016, antes das eleições presidenciais dos Estados Unidos, e só foi encerrado em 2019.
A escolha estilística de referência aos filmes western se originou não só pela locação, considerando que diversos filmes do gênero foram gravados no Arizona, mas também pelo alinhamento desse gênero com a ideologia da cidade. Fernanda nos conta que o gênero western é americano por excelência e conservador, ao passo que recria o mito criador dos Estados Unidos com a ideia de que os cowboys ergueram o país, sempre tratando o estrangeiro como o inimigo. “Isso tá na base do pensamento de direita e conservador: o outro é o inimigo, você deve ser proteger do diferente”.
Sobre os desafios de se fazer cinema independente, ela diz: “São muitos”. “Durante muito tempo eu pensei que a opção que eu tinha era ser uma técnica de publicidade, ir fazer alguma coisa de publicidade e dirigir publicidade, que essa era minha alternativa, e, talvez, ocasionalmente, se eu tivesse sorte, eu faria um filme”. O processo de ser cineasta independente é longo e difícil, demora-se para ter dinheiro e quando se tem, é pouco porque cinema é muito caro. Nem sempre se tem o privilégio de ter em mãos uma equipe que queira e possa ficar gravando por um mês sem receber. Comenta que mesmo a alternativa dos editais se torna limitada, uma vez que muitos projetos são censurados por desalinhamento político ou ideológico, usando como exemplo seu filme de 2017 que reconta a história da ditadura militar através dos olhos da pornochanchada. Porém, mais tarde na entrevista, ela nos anima: “É muito difícil, mas ao mesmo tempo é maravilhoso”.
Fernanda deixa claro o choque quando fala da experiência de retornar e falar com aquelas pessoas; um choque de ideias e uma espécie de espanto ao perceber as opiniões que tinham as pessoas que a cercaram quando era mais jovem. Mas sua intenção não foi, definitivamente, fazer o que ela chama de “Egotrip”, algo dramático e pessoal. “A minha ideia sempre foi que a minha história pessoal era um ponto de partida para chegar numa visão política, coletiva, de algo a mais. Não o contrário.”, fazendo uma comparação com o filme Democracia em Vertigem (2019), de Petra Costa, que busca fazer o caminho oposto. “Eu vou usar minha história pessoal como fio narrativo, construir uma história bonitinha, com ponto de virada, etc. pra gente chegar em outro lugar [...] Se for pra fazer terapia, a gente faz terapia. Não precisa fazer um filme pra isso”. Fernanda nos conta que buscou investigar o que era a cidade mais conservadora dos Estados Unidos. Em 2016, “eu fui achando que ele (Trump) ia ganhar e eu saí com a certeza de que ia ganhar”. Ela deixa claro que a intenção das entrevistas era a de abrir o diálogo com respeito e ética, e não com preconceito e caricatura, e respeitar a humanidade e contradições dos personagens. “Todo mundo tem alguém querido, da família, que de repente votou no Bolsonaro, que de repente mostrou um lado que a gente não sabe exatamente como lidar. Então é óbvio que tem uma distância minha, mas tem um afeto também, por um lado, principalmente com essa segunda família. A primeira nem aparece no filme, e a segunda família, quando quase fui deportada, foi quem me acolheu”. As perguntas eram simples, mas profundas, como o que é ser americano, ou o que é ser conservador, e os entrevistados, apesar de se declararem todas essas coisas, nunca tinham pensado nisso antes, ela nos conta.
A cineasta também nos fala um pouco sobre a visão dela dos Estados Unidos antes e depois de seu intercâmbio. Como a maioria de nós, ela consumiu todo o boom de filmes americanos de colegial dos anos 90 e 2000 (American Pie, As Apimentadas, As Patricinhas de Beverly Hills e até o pioneiro O Clube dos Cinco), que até hoje tem espaço nas telas, agora também em forma de série. “Eu fui muito motivada por isso, eu queria viver num filme americano; queria ser amiga das líderes de torcida, queria viver aquele sonho, mesmo”. Comenta a prática americana de conseguir vender seu próprio estilo de vida, o sonho americano, para o estrangeiro mesmo em momentos de crise. Porém, para a história de seu retorno ao país, houve influências de filmes que despedaçam o sonho americano, como Paris, Texas (1984) e Stroszek (1977), que a inspiraram no quesito da decepção pessoal que o país ofereceu a uma menina que se entendeu latina naquela ocasião.
Tivemos um pequeno tour pelo site zonaarida.com.br¹, um portal interativo que nos coloca em posições semelhantes às provocadas pelo documentário. No site, você seleciona desde seus gostos climáticos até sua identidade étnica e, com base neste questionário, é programado uma espécie de roteiro de lugares de interesse da cidade de Mesa. Nota-se nas imagens a beleza que chama atenção até dos produtores, que, conta Fernanda, tiveram que tomar cuidado com o próprio fascínio. “É tão absurdamente lindo que vira quase uma beleza opressora”.
Fernanda nos conta um pouco sobre os projetos futuros que está planejando. Ao que parece, está finalizando um curta experimental que estreará em novembro num festival, e também ganhou recentemente um edital de videoarte da Fundação Joaquim Nabuco, de Recife. “Ganhei esse edital na virada para governo Bolsonaro [...] É um filme totalmente o que o governo Bolsonaro chamaria de marxismo cultural”. Ela diz que está passando por um processo de redimensionar os próprios projetos, para conseguir concluí-los mais rápido e com menos dinheiro. Existe a intenção de colocar o Zona Árida em plataformas de streaming como a própria Netflix, que já tem em seu catálogo o documentário anterior da cineasta. Fernanda possui em seu trabalho uma tendência à experimentação, ao passo que, para ela, o próprio filme tem um caráter altamente experimental.
Perto do final, conversamos sobre um assunto que parecia inevitável: o desmonte do Cinema brasileiro. Fernanda comenta sobre a desestruturação da Cinemateca, do enfraquecimento de órgãos como a Ancine, que “está paralisada e hoje serve para burocratizar apenas”, e que está cada vez mais difícil de se saber para onde ir ou como progredir para produzir. Cita como alternativas o Proac e a SPCine, a qual considera R$1 milhão de reais um baixo orçamento, criando um grande problema para o cinema independente, e também os streamings. Mas Fernanda nos aconselha: “Não formate o seu projeto para que um parecerista bolsonarista veja”. Apesar dos entraves que os produtores enfrentam, ela acredita que devemos lutar para que os nossos filmes permaneçam da forma (e do tamanho) que os vislumbramos.
O filme Zona Árida está disponível nos streamings Now, Vivoplay, OiPlay, Google Play, iTunes e YouTube e, em breve, deverá estar em streamings maiores.
1: Link para o tour vitual: zonaarida.com.br
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