Novos Olhares, Novas Resistências: O “Novíssimo” Cinema Brasileiro Independente
- camaraescurarevist
- 24 de nov. de 2020
- 17 min de leitura
Atualizado: 2 de dez. de 2020
Por Catarina Bijotti e Gabriel Higa
O tema que guia a primeira edição da nossa revista não poderia ser mais importante e significativo para os estudantes e profissionais da nossa área. Pensar cinema no Brasil é pensar, entre outras coisas, nas dificuldades que enfrentamos para fazer um filme, nas complicadas políticas públicas e, principalmente, na falta de público que são refletidas em comentários negativos sobre o cinema nacional que não são raros de se ouvir por aí.
É preciso ter em mente o que é o cinema independente dentro do cinema brasileiro. Em um país que não conseguiu criar uma indústria cinematográfica, toda produção parece um pouco independente. Nosso cinema sempre andou com fomento e investimento público. No mundo, poucos conseguiram: Hollywood e Bollywood (e Nollywood, na Nigéria, mais recentemente) seguiram o modelo industrial com sucesso e se tornaram referência no mundo.
Como será demonstrado ao longo do texto, novas formas de fazer cinema foram desenvolvidas no Brasil até chegar no cenário que conhecemos hoje.
CINEMA INDEPENDENTE BRASILEIRO: BREVE HISTÓRICO
O objetivo do panorama histórico é evidenciar as tentativas fracassadas de criar uma indústria no país e entender como foram desenvolvidas as políticas públicas para o audiovisual que conhecemos hoje. Partimos do ponto da história do nosso cinema em que ocorreram dois marcos importantes: a primeira interferência estatal no cinema brasileiro e a primeira tentativa de criar uma indústria cinematográfica no país.
Nos anos 20 surgem as primeiras revistas de cinema, meios importantes de disseminar a discussão sobre o tema e sobre como fazer cinema no Brasil. Adhemar Gonzaga, criador de uma das revistas mais importantes, a Cinearte, funda em 1930 a Cinédia. Seguindo a lógica industrial do modelo estadunidense, a Cinédia ganhou lucro e reconhecimento através das chanchadas, comédias tipicamente brasileiras.
Nessa mesma década, Getúlio Vargas vê no cinema um potencial político e cria o INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo) com o objetivo de produzir filmes que escrevam uma história nacionalista do Brasil, como as obras dirigidas por Humberto Mauro O descobrimento do Brasil (1937) e Os Bandeirantes (1940). O INCE atuou até 1966 produzindo mais de 400 filmes.

Capa da primeira edição da revista Cinearte. Imagem tirada da Biblioteca Nacional Digital
A década seguinte é marcada pela consolidação do modelo industrial com a criação da Atlântida no Rio de Janeiro em 1941 e da Vera Cruz em São Paulo em 1949. A Atlântida possuía como foco as chanchadas, atraindo muita atenção popular e se aproveitando de uma intensa sintonia estabelecida entre produção e exibição proporcionada por seu principal acionista, Luiz Severiano Ribeiro, dono de salas. Tentando criar um cinema diferente das chanchadas, a Vera Cruz tinha como foco a qualidade técnica e artística de nível internacional. Iniciativa de uma incipiente elite paulista, a Vera Cruz realizou filmes importantes, mas não conseguiu cumprir seu objetivo uma vez que foi incapaz de se manter financeiramente. Entre os diversos fatores que colaboraram para a falência desse modelo industrial está a chegada da televisão, em 1950.

Cartaz do filme O cangaceiro (1953), da Vera Cruz. Imagem tirada do site Enciclopédia Itaú Cultural
Com a falência das grandes empresas, o modelo hollywoodiano passa a ser repensado e profissionais da área começam a pedir interferência do Estado para que o cinema sobreviva. Produtores se reúnem em congressos para discutir a problemática da produção brasileira frente ao domínio do cinema estrangeiro, e intelectuais como Paulo Emílio Salles Gomes discorrem a respeito dos impasses envolvendo a precariedade do cinema nacional e nossa relação de colonialismo cultural.
Tal interferência é forte nos anos 60 com a criação da GEICINE (Grupo executivo da indústria cinematográfica), em 1961. Parte deles a iniciativa de criar o INC (Instituto Nacional de Cinema) em 1966. A GEICINE tinha como objetivo garantir as condições para o desenvolvimento da indústria de cinema no país.
Contra esse modelo industrial que tentavam construir estava o Cinema Novo. O movimento tinha como influência principal o cinema de autor francês. A estética da fome de Glauber Rocha subverte a própria lógica de cinema industrial: usa a precariedade de recursos como forma narrativa.
Outro cinema que cresce em paralelo aos filmes industriais é o Cinema Marginal. Com diferenças do Cinema Novo, o Cinema Marginal vinha na onda da contracultura e assimilava alguns elementos dos filmes hollywoodianos. Mas a dificuldade em enfrentar a pressão da censura militar afetou esse cinema. A Boca do Lixo, em São Paulo, acaba produzindo diversas pornochanchadas nos anos 70, pois eram de baixo custo e tinham um apelo ao público masculino, o que resultava em uma boa bilheteria.

Rogério Sganzerla, diretor do cinema marginal. Imagem tirada do site Memória EBC.
A criação da Embrafilme em 1969 impulsiona o cenário brasileiro. A empresa estatal tinha como objetivo a produção e distribuição de filmes brasileiros. Sua criação, apesar de ter o mérito de impulsionar nosso mercado, foi muito criticada por criar uma censura do que poderia ser produzido ou distribuído. A cineasta Adélia Sampaio, primeira cineasta negra a dirigir um longa-metragem no Brasil, cita em entrevista que a Embrafilme se recusou a produzir seu filme Amor maldito (1984) pela temática centrada em um casal de mulheres e os preconceitos que elas sofreram da sociedade (BRASIL, 2016). A cineasta teve que fazer o filme com doações. Apesar disso, a Embrafilme foi responsável por algumas das maiores bilheterias do cinema brasileiro. O sucesso de Dona Flor e seus dois maridos (1976) levou mais de 10 milhões de pessoas ao cinema, bilheteria que só foi superada em 2010 com Tropa de Elite 2. A década de 70 apresentou grandes sucessos de bilheteria, como A Dama da Lotação (1978) e diversos filmes do grupo humorístico Os Trapalhões, que estendeu sua produção de filmes dos anos 60 aos anos 90.

Manchete anuncia criação da Embrafilme em 1969. Imagem tirada do acervo digital da Folha de S. Paulo
Em plena ditadura militar, no ano de 1972, José Sarney apresenta pela primeira vez ao congresso a Lei 7.505, conhecida como lei Sarney, mas não conseguiu aprovação. Apenas em 1986 a lei foi promulgada, dando início à lógica de incentivo a cultura que temos hoje, estabelecendo um incentivo a cultura por incentivo fiscal.
Em 1990 o governo Collor, impulsionado pelo pensamento neoliberal, elimina a Lei Sarney, a Embrafilme e o Ministério da Cultura, transformando-o em uma secretaria. Em 1991, entretanto, sanciona a lei 8.313, conhecida popularmente como lei Rouanet, que restabelecia os princípios da lei Sarney. A lei, que foi tanto criticada e usada como manobra política nas eleições presidenciais de 2018, nada mais é do que o financiamento de projetos culturais através do incentivo fiscal. Ou seja, o dinheiro não sai diretamente dos cofres do governo, como foi muito divulgado por pessoas desinformadas na internet, mas sim de empresas ou pessoas físicas que financiam esses projetos com parte do dinheiro que seria destinado ao Imposto de Renda.
Outra importante lei do período é a Lei do Audiovisual, de 1993. Voltada exclusivamente para produtos audiovisuais (longas, curtas, documentários, ficção e animações), a lei também é caracterizada pelo fomento indireto. Ela permite que pessoas físicas ou jurídicas tenham isenção fiscal se direcionarem seu dinheiro para projetos audiovisuais.
Assim, o governo Collor apresenta uma virada no cenário audiovisual brasileiro. Ao fechar a Embrafilme e criar as leis de incentivo, ele dá espaço para o financiamento de filmes através de instituições privadas, cenário que permanece até hoje.
A extinção da Embrafilme cria um cenário pessimista para o cinema nacional, diminuindo drasticamente o número de produções no país. Com isso, muitos profissionais foram trabalhar na televisão ou em empresas de publicidade, o que iria refletir em uma mudança da linguagem cinematográfica dos nossos filmes.
O Cinema de Retomada utiliza das leis de fomento indireto para a produção de seus filmes. Carlota Joaquina (1995) é considerado o primeiro filme da Retomada, seguido por títulos como Lamarca (1995) e O que é isso companheiro (1997). Ainda que não tenha atingido o sucesso de público que os filmes da Embrafilme possuíam, foi o renascimento do nosso cinema após um período tenebroso. É nesse período que é criada também a Globo Filmes, em 1998, que atuou como co-produtora de algumas das maiores bilheterias dos últimos anos.
Ainda que tenha possibilitado a Retomada, o mecanismo de isenção fiscal gerou críticas no sentido de que, ao transferir a decisão de quais filmes seriam financiados para as empresas, majoritariamente seriam selecionados projetos de maior apelo comercial e retorno certo. Concomitantemente, a noção mercadológica de cinema trouxe a bagagem da publicidade e da televisão, incorporando suas linguagens, técnicas e padrões estéticos, fazendo disparar o custo de produção.
Nesse período, os filmes brasileiros começam a sofrer diversas críticas pelo seu alto custo. Temos como exemplo máximo desse caso o filme Chatô, cujo projeto foi desenvolvido em 1995 e interrompido em 1999. O diretor captou um valor altíssimo para o filme e, como o projeto foi interrompido, segue em julgamento pelo mau uso de dinheiro destinado à cultura. Em 2015 o filme finalmente foi lançado.
Entre as críticas aos altos custos, a Revista Veja publicou em 1999 uma matéria escrita por Celso Masson intitulada "Caros, ruins e você paga" (VASCONCELOS-OLIVEIRA, 2014, p. 40). Esse tipo de crítica criou um discurso contra o uso de recursos públicos para o fomento dos filmes brasileiros que é presente até hoje no discurso popular.
Em 2001, é criada a ANCINE (Agência Nacional do Cinema), que tem como objetivo regular o mercado audiovisual do país. Diferente da Embrafilme, que era uma empresa estatal que atuava diretamente na produção e distribuição dos filmes brasileiros, a ANCINE tentava auxiliar nesse contato entre artistas e mercado privado. Com o passar do tempo, a agência passou a também fomentar o cinema brasileiro.
AS TRANSFORMAÇÕES NO SÉCULO XXI
Nas primeiras duas décadas do novo milênio, uma nova relação contra-hegemônica de produção de cinema independente foi articulada. Beneficiada por uma nova aproximação entre Estado e cinema e pelo surgimento de novas tecnologias, novos cineastas surgiram, dando destaque a uma geração plural e descentralizada, que levou o cinema nacional a um patamar de reconhecimento crescente.
Primeiramente, a criação do Fundo Setorial do Audiovisual da ANCINE possibilitou, através do fomento direto, que produções de menor apelo comercial pudessem ser contempladas com recursos. Ao mesmo tempo em que investe em toda a cadeia cinematográfica (produção - distribuição - exibição), possibilita retorno financeiro através do risco e da valorização do desempenho comercial prévio do produtor, retroalimentando o mercado. A iniciativa da Ancine de criação de novas linhas de fomento, aliada à expansão de editais públicos de âmbito municipal e estadual fora do eixo RJ-SP, possibilitou a descentralização da produção brasileira para novos locais: o êxito do cinema pernambucano é exemplo dessa política.
Além disso, o desenvolvimento da tecnologia digital proporcionou o barateamento da produção. Com os equipamentos mais acessíveis, além da popularização da internet, facilitou-se o processo de filmar, editar e difundir uma obra cinematográfica. O processo de produção se tornou mais flexível, com funções de equipe não tão rígidas, dando outras oportunidades para além do financiamento público e possibilidades de interlocução com o público fora das salas de cinema.
Com o surgimento da internet, renovou-se também o segmento da crítica cinematográfica. Sites e revistas eletrônicas como Contracampo e Cinética reuniram jovens cinéfilos com novos olhares ao filmes produzidos por autores de diversas partes do mundo, como Apichatpong Weerasethakul, Naomi Kawase, Claire Dennis, Lisandro Alonso, M. Night Shyamalan e Rita Azevedo Gomes, geralmente com posicionamentos mais densos que a crítica tradicional jornalística. Muitos desses novos críticos passaram a realizar curadoria em mostras e festivais, como a Mostra de Tiradentes, abrindo espaço à revelação e difusão dos novos cineastas.
O “NOVÍSSIMO” CINEMA
É preciso esclarecer que o termo “novíssimo” foi utilizado a fim de caracterizar um recorte de tempo (cinema independente brasileiro da última década) e uma relação contra-hegemônica a um processo de “cinemão” comercial e de linguagem ligada aos códigos da publicidade e aos grandes orçamentos. Não há uma estética unitária: diversidade é a palavra-chave que pode definir uma classificação que, de certa maneira, é vaga.
Não existe uma unidade estilística no "novíssimo cinema brasileiro". Não é possível estabelecer uma homogeneidade estética ou temática nos filmes produzidos de norte a sul do país, o que comprova a dificuldade de caracterização desse conjunto de obras em um "movimento". Entretanto, é possível estabelecer pontos de contato.
O primeiro ponto é o questionamento das estruturas arcaicas do país. A democratização dos meios de produção e difusão cinematográficos deu espaço a grupos antes marginalizados no cinema nacional. Mulheres, negros, LGBTQIA+, indígenas e refugiados puderam expor nas telas questões pertinentes a suas vivências e percepções, em detrimento de uma imagem que, na nossa cinematografia, havia sempre sido construída por homens brancos, cis e heterossexuais do eixo sul-sudeste do Brasil.
O segundo ponto é a circulação em festivais. Eventos como a Mostra de Tiradentes e a Semana dos Realizadores abriram portas a uma nova geração de cineastas, contribuindo para sua difusão em território nacional por meio de um olhar de curadoria aberto a novos paradigmas estéticos, narrativos e sociais. Entretanto, com frequência, ocorre primeiro o reconhecimento em festivais internacionais, tais como Locarno, Berlim e Cannes, para então a obra chegar ao circuito interno. Essa inversão de trajetória reflete a ainda difícil conquista dos dois alicerces restantes do tripé cinematográfico: distribuição e exibição.
Mesmo com o significativo aumento de público do cinema nacional nas últimas décadas, o avanço das tecnologias de streaming, a maior oferta de festivais online e os prêmios relevantes conquistados (Bacurau talvez seja um notório exemplo disso), o market share das produções brasileiras ainda é reduzido frente à produção estrangeira. Ainda assim, empresas como a Vitrine Filmes e a Embaúba Filmes se dedicam a distribuir este novo cinema e levar às telas, físicas ou virtuais, as imagens pensada e realizadas por cineastas inquietos e combativos.
APROXIMAÇÕES ESTÉTICAS: TEMPOS, ESPAÇOS E CORPOS
Uma questão importante em termos estéticos e narrativos do “novíssimo” cinema brasileiro é a visão do filme como processo, e não mais o fim. Em contraponto a um "cinemão" tradicional narrativo, de certa forma pasteurizado pela linguagem do blockbuster americano, os novos realizadores testam os limites da linguagem, não raramente realizando um cinema de fluxo, de tempos mortos, de entrelaçamentos com o documentário, dialogando com a videoarte e formas experimentais de manipulação da imagem. Eles lançam um olhar contundente sobre a relação entre o mundo e as imagens.
Nessas obras, percebemos uma força subjetiva, que põe o artista de encontro a uma realidade estranha e incômoda. Contudo, muitas vezes esse "cinema de confronto" não chega a explodir: caminha sensivelmente ao redor do mundo, questionando e tensionado os códigos da realidade sem necessariamente explicitar a ruptura. Político sem necessariamente falar de política.
O lugar é importante no cinema brasileiro contemporâneo: o lugar geográfico, o lugar de fala, o lugar de vivência. Há um cuidado com a composição do quadro, a ambiência, o esticamento do tempo, o movimento dos corpos e a valorização de pequenos detalhes. Por mais que pareça subjetivo, o cinema brasileiro hoje é mais coletivo do que nunca: seja no modo de produção ou na estética cinematográfica, há uma preocupação latente em retratar o espaço coletivo, o espaço do outro, em lançar um olhar singelo ao outro falando de si mesmo.
UM CINEMA COLETIVO
Como já citado anteriormente, o cinema atual parece mais coletivo do que nunca. As mudanças tecnológicas que surgiram nos últimos anos auxiliaram para que o cinema chegasse a esse ponto. Se antes os equipamentos eram muito caros e a distribuição era extremamente complicada (não que hoje ainda seja algo fácil), o avanço da tecnologia permitiu um pequeno barateamento de equipamentos e a internet serve de espaço para divulgação e distribuição dos projetos mais independentes.
Como consequência se tornaram cada vez mais comuns os coletivos de cinema ou pequenas produtoras no país. Formados por pessoas que desejam fazer cinema mas que estão fora do eixo mais comercial, essas produções foram responsáveis por alguns dos melhores filmes nacionais dos últimos anos.
Suas produções são mais flexíveis, não têm a rigidez de funções que o cinema industrial possui. Além disso, por não estar no eixo comercial têm mais liberdade artística e podem ousar na sua narrativa ou estética. Essa experimentação e flexibilidade enriquecem os filmes, o que já é visível em algumas produções de 2010 para cá: se o senso comum imagina o cinema brasileiro como algo que sempre cria a mesma coisa (comédias cariocas, por exemplo), essas produções independentes provam a riqueza do nosso cinema: temos filmes de terror, ficção científica, dramas de diversas partes do país e documentários que fogem de sua forma clássica.
A internet possibilitou, como já foi dito, uma maior divulgação e distribuição desses filmes. Utilizando redes sociais, por exemplo, a divulgação do projeto começa na pré-produção, o que pode ser usado como estratégia para os filmes que utilizam plataformas de financiamento coletivo para realizar seus filmes. A estratégia de crowdfunding, a famosa “vaquinha” online, é realidade no cenário artístico (publicação de livros, produção de filmes, financiamento de eventos) não apenas no Brasil.
Por fim, a internet é espaço também para a exibição desses projetos. Vimeo e YouTube são algumas plataformas que permitem não só a exibição do projeto final como permitem também uma conexão entre o realizador e seu público, ou uma conexão entre diversos profissionais da área, por exemplo.
Com todos esses fatores, o cinema brasileiro dos últimos anos diversificou suas produções fora do tradicional eixo RJ-SP e viu impulsionar um cinema cada vez mais artístico e autoral, sem medo de criar narrativas e estéticas diferentes. Toda essa riqueza dos filmes que vemos de uns tempos pra cá mostra que o cinema nacional está mais aberto do que nunca para novas possibilidades. A seguir, exemplificamos alguns cenários brasileiros que vêm proporcionando reconhecimento e abrindo novos caminhos para o cinema.
FANTASMAS MINEIROS
Por mais que exista um movimento de descentralização na produção brasileira, este processo se concentra principalmente nas capitais estaduais. Entretanto, há exceções. A produtora Filmes de Plástico, de Contagem (MG), há mais de uma década vem colhendo os frutos de seu sucesso em mostras e festivais renomado do Brasil e do exterior, sempre lançando um olhar pautado na simplicidade do cotidiano periférico.
Formada pelos diretores André Novaes Oliveira, Gabriel Martins, Maurílio Martins e pelo produtor Thiago Macêdo Correa, a produtora acumula passaportes carimbados para Cannes, Rotterdam, Locarno, Cartagena, Lisboa, dentre outros importantes festivais internacionais e nacionais, como Tiradentes e Brasília. Foi na capital federal que Carlos Reinchenbach viu um curta do grupo e se encantou: previu que “a lua se fez em Contagem”.

Equipe da Filmes de Plástico. Imagem tirada do site da produtora.
Os curtas e longas da Filmes de Plástico lançam um olhar cuidadoso aos detalhes, ao silêncio, à contemplação e à calmaria da periferia majoritariamente preta, sem deixar de tocar em seus inúmeros problemas. Corpos negros morrendo nos subúrbios não é a imagem realizada aqui: em Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, a câmera está nas mãos do periféricos.
O curta-metragem Fantasmas (2010), com somente um plano fixo e vozes dos atores, retrata a obsessão amorosa como poucas vezes foi visto no cinema. O longa Temporada (2018), ao retratar o dia-a-dia de uma agente de saúde pública encarregada de eliminar focos de dengue, extrai beleza do cotidiano, da paisagem periférica e dos tempos vazios, como se zombasse de um cinema que busca o “essencial” das coisas ao eliminar supostas “barrigas”. O que é essencial? Já em No coração do mundo (2019), vemos a criminalidade como revolta prestes a explodir, sem largar a mão dos laços afetivos estabelecidos entre aqueles corpos desconfortáveis. Infelizmente, Carlão não viveu para ver a lua cheia brilhar dos subúrbios de Minas Gerais para o mundo.
A LIBERDADE IRRESTRITA
Um filme símbolo que pode retratar este texto foi lançado em 2010, na Mostra de Tiradentes, causando furor: Estrada para Ythaca, do coletivo Alumbramento, de Fortaleza (CE). Formado por diversos diretores, dentre os quais Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Pedro Diógenes, Guto Parente e Rúbia Mércia, a produtora surgiu em 2008 com o filme Às vezes é mais importante lavar a pia do que a louça ou simplesmente Sabiaguaba (2006), e encerrou suas atividades com Inferninho (2018).
O intuito da Alumbramento sempre foi um só: experimentar. Explorar não somente o cinema, como também promover cineclubes, exposições e intervenções artísticas. O coletivo desbravou as possibilidades artísticas de se realizar cinema no Ceará quando as políticas governamentais de fomento ao audiovisual ainda eram escassas por lá.
Em Estrada para Ythaca, os realizadores se revezam nas funções do filme: produção, direção, fotografia, montagem, som, e são atores do próprio filme. De baixíssimo orçamento, o filme conta a história de quatro amigos num bar, que resolvem pegar a estrada para buscar os rastros de um quinto amigo, morto, que supostamente estaria em Ythaca. O road movie que arrasou Tiradentes elenca uma característica marcante do “novíssimo” cinema: a valorização do processo, da descoberta e da incompletude.

Cartaz do filme Estrada para Ythaca. Imagem tirada do site do coletivo.
DENÚNCIA E COLETIVIDADE NO CORAÇÃO DO “IMPÉRIO”
São Paulo é o centro do mercado audiovisual brasileiro, e isso é fato. É sede das grandes produtoras, agências de publicidade, emissoras de televisão, locadoras de equipamentos e da maior quantidade de salas e festivais de cinema do país, além de robusto fomento público à atividade audiovisual (SPCine e Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado), na contramão do desastre do Governo Federal.
Todavia, é notável que os obstáculos já debatidos a quem deseja produzir cinema no país se repitam na cidade mais rica do Brasil. São os gargalos na distribuição e exibição e a dificuldade de se inserir no mercado por outros caminhos que não sejam a dependência única e exclusiva de editais públicos, ou o famoso “Q.I.” (“Quem Indica”).
Em detrimento de uma situação tão desigual, realizadores, principalmente das periferias da cidade, vêm produzindo filmes que desafiam as normas do cinema “Gullane” e “O2”, dando destaque a suas vivências, seus traumas e seus modos de viver. Criado na violência do Capão Redondo, Cristiano Burlan teve a morte como formação. Sua mãe foi assassinada pelo parceiro, e seu irmão foi morto pela Polícia Militar. Essas perdas dolorosas foram revividas e redimensionadas respectivamente em Elegia de um Crime e Mataram Meu Irmão. Se a arte não transforma o mundo, pelo menos tem a potência de balançar certezas e tensionar o estado das coisas. Mataram Meu Irmão recebeu prêmio das mãos de Geraldo Alckmin, então governador, chefe da PM: uma mediação, um confronto, proporcionado pelo cinema.
O coletivo Filmes do Caixote foi uma dessas iniciativas que, por meio da interlocução e da troca, buscam produzir além do cinema comercial da metrópole, reinventando gêneros como o horror e o musical, ainda em falta na nossa cinematografia. Composto pelos diretores Caetano Gotardo, João Marcos de Almeida, Juliana Rojas, Marco Dutra e Sergio Silva, seu núcleo duro foi formado na tradicional Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP. O Papel do Manto, de Sérgio Silva, A Criada da Condessa, de Juliana Rojas, Eva Nil Cem Anos Sem Filmes, de João Marcos de Almeida, Rede de Dormir, de Marco Dutra, e Matéria, de Caetano Gotardo, são algumas de suas obras, misturando o experimentalismo do Cinema de Invenção, a poesia de Júlio Bressane e o drama de Walter Hugo Khouri com referências clássicas de terror, suspense e musical. Além do coletivo, os filmes dirigidos por cada membro também arrebataram prêmios nacionais e internacionais, como Trabalhar Cansa e As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra, Quando Eu Era Vivo, de Marco Dutra, Sinfonia da Necrópole, de Juliana Rojas, O que se Move e Seus Ossos e seus Olhos, de Caetano Gotardo, e o recente Todos os Mortos, de Caetano Gotardo e Marco Dutra (este último concorreu ao Urso de Ouro 2020 em Berlim).

Marco Dutra e Juliana Rojas ao lado do elenco de As Boas Maneiras. Imagem tirada do site Mulheres no cinema.
AMANHÃ HÁ DE SER OUTRO DIA
O nosso cinema ganhou fôlego para se mostrar ao mundo com filmes criativos, políticos e necessários. A participação em festivais internacionais ajuda no reconhecimento do nosso cinema pela imprensa e, consequentemente, um reconhecimento cada vez maior do público.
A fundação de distribuidoras nacionais voltadas especificamente para esses filmes independentes, como a Vitrine Filmes, cria um mercado (ainda que pequeno) de exibição de filmes que antes ficariam à margem do nosso cinema. Se antes salas exibiam em sua maioria o cinema comercial brasileiro (como comédias da Globo Filmes), agora é possível ver uma maior diversidade em alguns lugares (pelo menos nas grandes capitais que concentram o maior número de espaços de exibição). Além das salas de cinema, esses filmes também podem ser vistos em plataformas de streaming. Branco Sai Preto Fica (2014), de Adirley Queirós, está disponível na Netflix, por exemplo. A plataforma Cardume também foi criada especificamente para curtas-metragens, ampliando a distribuição desses filmes independentes.
Mesmo em crise do setor audiovisual nos últimos anos, o cinema nacional conseguiu driblar alguns problemas e mostrar para o público como ele é inovador e necessário para a cultura do nosso país. Além de gerar diversos empregos, é expressão de nossa identidade e, graças a todas as mudanças que enfrentamos nos últimos anos, essa identidade não sai só do RJ ou SP. Pode ser a identidade de Recife, Minas Gerais, Ceará, Ceilândia... Os artistas e profissionais provaram o contrário para todos os seus críticos mais ferrenhos: nosso cinema não é ruim, sem graça, ultrapassado ou apelativo. Aliás, é difícil até de definir em poucas palavras o que é o cinema brasileiro, uma vez que ele se apresenta no modo mais livre, criativo, coletivo e inovador que poderíamos esperar.
Apesar dos sucessos, ainda enfrentamos momentos de crise. Crise essa que se reflete na Cinemateca: a memória de todo o nosso cinema corre risco de vida. Ainda que a qualidade do nosso cinema seja reconhecida em diversas partes do mundo, ainda sofremos com as críticas de conservadores e apoiadores de um governo destrutivo. O cinema ainda não é levado a sério, não é apreciado pelo próprio povo. A falta de valorização do mercado faz profissionais trabalharem por salários muitas vezes ridículos, e causa, por fim, a desistência de muitos deles.
O futuro não parece, de fato, nada bom para nosso cinema. Apesar de poucos conseguirem prosperar, a maioria não consegue apoio financeiro para trabalhar. O que resta é tentar garantir que o Estado faça seu trabalho em fornecer o necessário para o desenvolvimento do cinema no nosso país.
Enquanto isso, os poucos filmes que prosperam ficam com a responsabilidade de mostrar para o país que temos qualidade, diversidade e liberdade. No fim, o objetivo é fazer com que as pessoas percebam que cinema brasileiro é muito mais que Cidade de Deus.
Referências:
BRASIL, Samantha. Debate: Por um cinema negro feminino, 2 dez. 2016. Disponível em: <https://deliriumnerd.com/2016/12/02/cinema-negro-no-feminino/>. Acesso em: 05 nov. 2020
IKEDA, Marcelo. O “novíssimo cinema brasileiro”. Sinais de uma renovação; Cinémas d’Amérique latine, 2012.
Disponível em : <https://journals.openedition.org/cinelatino/597>. Acesso em 03 nov. 2020
VASCONCELOS-OLIVEIRA, Maria Carolina. “Novíssimo” cinema brasileiro: práticas, representações e circuitos de independência. 2014. Tese (Doutorado em PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA) - Universidade de São Paulo, 2015
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