Adirley | Higa-Forattini
- camaraescurarevist
- 24 de nov. de 2020
- 22 min de leitura
Atualizado: 2 de dez. de 2020
Cinema, Experimento, Futebol, Estado: discorrendo sobre os filmes de Adirley Queirós
Por Gabriel Higa e Ulisses Forattini
16 de outubro de 2020. No último dia da Semana Play Rec, recebemos a ilustre presença do cineasta Adirley Queirós para a palestra “Cinema Independente nas periferias do Brasil”. De cabelos desgrenhados, direto de sua casa na Ceilândia (DF), Adirley ligou sua webcam e pudemos estabelecer, através do Blackboard Collaborate, uma conexão, uma sintonia entre convidado, mediador e mais de 100 alunos.
Adirley Queirós nasceu em Morro Agudo de Goiás e foi para a Ceilândia por volta de 1974. Lembra que seu pai saía de madrugada para vender bolo na rodoviária. Uma vida de correria, como a de todo morador da periferia. Adirley trabalhou em padaria e vendia doce na rodoviária. Por anos, trabalhou como jogador de futebol. Depois, passou a dar aula particular de matemática, física e química. Não tinha formação prévia, sempre sendo independente: ao mesmo tempo que aprendia os conteúdos, estudava o material de suas aulas nas bibliotecas.
Interessou-se pela área de comunicação da UnB por acaso e foi lá onde aprendeu sobre cinema. Ao longo do curso, Adirley frequentava aulas de diversos departamentos da universidade como ouvinte. Seu Trabalho de Conclusão de Curso foi o curta Rap – O Canto da Ceilândia (2005), premiado no Festival de Brasília.
Anos após o sucesso de seu TCC, Adirley fundou o coletivo CEICINE e filmou o curta-metragem Dias de greve (2009). A partir daí, por meio de editais públicos, sua carreira deslanchou: vieram o média Fora de campo (2009), o curta Meu Nome é Maninho (2014), e os longas A Cidade é Uma Só? (2013), Branco sai, preto fica (2014) e Era uma vez Brasília (2017).
As instabilidades da chamada de vídeo não foram capazes de quebrar o encanto que amantes do cinema sentiram naquela noite de sexta-feira. Por quase três horas, Adirley não deu uma palestra, mas sim uma conversa de bar entre amigos, discorrendo sobre cinema, estética, política, literatura e outros assuntos cotidianos. Sua fala era vibrante, apaixonada e livre, como é o seu cinema.

Como dar conta de um pensamento tão amplo, tão livre e sem amarras, mas ao mesmo tempo tão combativo? Decidimos então propor um texto que fosse uma conversa. Seria o registro de uma troca: uma conversa ao redor dos tópicos que nos viessem à cabeça. Por meio de uma chamada, registramos impressões, delírios, opiniões, idas e vindas a um assunto, ideias livres que nos guiavam para rumos inesperados. Reagir ao outro, de certa forma, é o que o cinema faz.
“Experimentar a porra do filme”. Um postulado que irá ecoar sobre a cabeça de muita gente após esse bate-papo.
Ulisses: Então, Adirley Queirós é esse cineasta que reside em Ceilândia, região periférica de Brasília. Mas parece que ele sempre valoriza Ceilândia. Ela é uma personagem importante em seus filmes. Sua primeira aparição foi logo em Rap, o Canto da Ceilândia, seu TCC na UnB. O impacto desse filme foi tão grande que foi referenciado no documentário Milton Santos: o Mundo Global Visto do Lado de Cá, de Silvio Tendler. O geógrafo é uma inspiração para Adirley.
Gabriel: Adirley Queirós é Ceilândia. Ele comenta sempre sobre o direito de ocupar um território.
U: Há uma discussão pertinente sobre o local de fala no documentário. Há casos de realizadores vindo de regiões de fora para filmar um local muito específico mas, quando exibe, parte para longe. Essa ética percorre a produção de documentários, e esse jogo de posições é um dever dos cineastas e das cineastas. O cinema de Adirley é brasileiro, conversa com sua vizinhança, a Ceilândia, e é para ceilandenses, mas há uma brasilidade autêntica sendo explorada.
G: De certa forma, a periferia é universal aqui no Brasil. Desde o Cinema Novo existe a ideia do cinema que fala sobre o outro. Como falar pelo outro? Por que o outro não fala por si?
Nos últimos anos, isso tem mudado. No caso de Adirley [seu cinema], Ceilândia é a cidade dos expulsos, dos excluídos de uma porção territorial que viria a ser o local da construção de Brasília. É comum nos filmes do Adirley a questão de como são posicionados os corpos em relação a um território. Quando Adirley comentava de suas visitas à Brasília, ele dizia que se sentia um corpo estranho, só tinha ele de Ceilândia indo para a UnB. A Universidade é um território negado para a população periférica. Ir para um lugar onde você é negado.
U: Brasília era praticamente o apartheid...
G: O apartheid é um muro. Ele está em todas as relações sociais, no horário de trabalho, no jeito de se vestir, no jeito de andar, no jeito de falar, no jeito de filmar... como se a visão predominante, da classe média, fosse a visão oficial! E não é.
U: É uma visão ainda muito comum de que o cinema deve ser bonito, deve ser bem fotografado... mas relevando mais o que se falava do que se sentia, sabe? Mais uma ideia de forma e conteúdo, um senso comum que, por exemplo, o Carlão (Carlos Reichenbach) criticava muito.
Isso me faz lembrar da forma que O Rap - O canto da Ceilândia foi feito. Foi a primeira vez de Adirley utilizando uma câmera, ele filmou duzentas horas de material com uma câmera de fitas, daquelas mais simples. Inspirado por essas ideias do Milton Santos.
O geógrafo dizia que há uma multiplicidade de fenômenos vindos das classes populares buscando expressar suas opiniões. Damos mais importância a esses bairros porque passam nos noticiários e mostram que ocorrem violência. É a aparelhagem, como o Milton Santos fala, da internet, o jornalismo das periferias, das comunidades, e o próprio cinema. Na entrevista para Tendler, Adirley diz que os equipamentos de cinema ainda são caros, mas as comunidades vão dando os seus jeitos para criarem sua cultura. Aí mostra trechos do filme, moradores de Ceilândia que se identificaram com o rap, que cantam para se manifestar, lutar contra o racismo e dando voz aos próprios ceilandenses. “Sou Negão Careca da Ceilândia, e daí?” e “Cada história dá uma letra”. Esse filme foi apenas o começo.
G: Milton tinha o conceito do “território usado”: as pessoas criam redes de solidariedade entre si, redes horizontais. O grande capital vem de forma vertical, de forma a organizar esses territórios. Por isso é uma questão profunda sobre a identidade das pessoas e de Ceilândia. E são corpos de resistência. O cinema de Adirley, assim como outros realizadores brasileiros, é como o Exército Zapatista (EZLN, movimento de resistência indígena e anticapitalista do México), resistentes a uma homogeneização. Não é mais a classe média vendo a periferia pelo Datena, vendo sangue, vendo tiros, com o helicóptero passando por cima filmando todo mundo morrendo. Datena é uma estética, é o sistema falando como você deve ver as coisas. O cinema do Adirley é contra essa “cosmética” da fome, é periféricos com periféricos. E Brasília é uma inimiga do Adirley.
U: O público geral tem como filme brasileiro favorito o Cidade de Deus. É até um bom filme, mas sinto que esse filme deixa passar ideias de que a periferia é o caos, a tristeza intensa, é o domínio do crime e do tráfico, descaso do Estado... O final mostrando aquelas crianças empunhando armas e “tomando conta”... parece que quem se dá bem é quem se livra da periferia.
Com o Adirley, eu me apaixono por esses lugares e as pessoas. Admiro Marquim do Tropa e DJ Jamaika. O Dilmar Durães (que também interpreta o viajante do tempo em Branco Sai Preto Fica) é um ator do caralho. Ele rouba a cena como o Dildu, o vereador do Partido da Correria Nacional em A Cidade É Uma Só?. Ele caminha com seu cunhado Zé Antônio (Wellington Abreu, creditado também como Zé Bigode), um vendedor de lotes e aproveitam um intervalo para uma caminhada.
“- Eu podia botar uma placa para vender esse terrenão todo aqui ó.
- Que alma viva vamos topar para falar de minha campanha aqui, cunhado? Vamos ao menos arranjar um lugar para tomar um negócio, mas será possível.
- É não, isso aqui é longe demais.
- Aquilo é um forno de biscoito? Um pão de queijo rachado? Cunhado você não pode ver essa terra espaçosa aqui senão cê vai querer vender.
- Vendo mesmo! Boto uma placa aqui: Zé Antônio”

A Cidade é Uma Só
G: E é ilegal, ele é como um loteador, um especulador. Só que na periferia isso é comum, as pessoas tentam levar sua vida da melhor maneira possível.
U: Isso reflete um pouco no A Cidade é uma só? novamente, porque é possível elencá-lo como um documentário, mas eles filmam uma história fictícia (Dildu e Zé Antônio) como documentário e a parte real (a cantora Nancy Araújo) como se fosse ficção.
G: A equipe pensou que a história da cantora Nancy era mentira, que ela estava inventando que ela havia gravado um jingle na infância, quando eles descobriram que era tudo verdade.
“Vamos sair da invasão
A Cidade é uma só
Você que tem um bom lugar pra morar
Me dê a mão me ajude a construir o nosso lar...
Para que possamos dizer juntos
A Cidade é uma só
Você, você, você
Você vai participar
Porque , porque , porque
A Cidade é Uma Só”
G: Tem a explicação do nome: C-E-I, Campanha de Erradicação de Invasões, a questão do apartheid na cara dura. Ceilândia é um “aborto territorial”, e provavelmente é a história da maioria das periferias do Brasil.
U: Uma cidade eugenista. Adirley e equipe escancaram isso. Eles se divertiram ali, mesmo mostrando cenas muito fortes. É essa questão das realidades: se estamos nos preocupando em mostrar “a verdade”, iremos fazer filmes pretensiosos. Imagina se fosse “a verdade sobre Brasília”. Pelo menos vimos o ponto de vista dos ceilandenses. A cena da tesourinha é outro choque, você já visitou Brasília?
G: Não...
U: Turistas, quando querem ver Brasília, querem ver a Esplanada e o centro da cidade. Acham tudo elegante, e não é a Ceilândia que eles querem ver. Mas você vê que Brasília é mais complicada do que parece. Tem a Asa Norte e a Asa Sul, e toda região era interligada por essas tesourinhas (pistas de retorno que cortam o eixo rodoviário de Brasília). No filme, eles ficavam muito tempo para fazer o retorno, porque você tinha que virar, subir a avenida depois virar à direita de novo, ignorar uma entrada porque pode ir para outro lado da Quadra, girar de novo para aí inverter o sentido! Quem é de fora se perde muito facilmente numa cidade que é muito pequena!
G: Segundo o Adirley, Brasília se parece com São Petersburgo, uma cidade medievalesca. Sem o povo da Ceilândia, Brasília nem existiria. Brasília é uma grande mentira e, como você falou, quem busca a grande verdade é jornalista, e cinema não pode se misturar com jornalismo. A verdade é um código. Qual que é a verdade para mim, para você, para eles? Não tem, tudo passa pela experiência.
Ao fazer um filme você põe a sua vida ali. Muitos que deram entrevista nos filmes viveram os fatos. No Branco Sai, Preto Fica há uma questão latente de vivência, muitos personagens são feridos mental e fisicamente pelo sistema. Quando se trata do acerto de contas, há uma pendulação entre os tempos passado, presente e futuro, e parece que o futuro é igual ao passado, não muda. É uma verdadeira imobilidade social em relação à história.
U: E tempos arrastados por diferentes cenários. O metrô surge como um transporte futurista em uma região distópica. É como o Alphaville, de Godard. No planeta comandado por uma tecnocracia, os prédios são tomados pelas sombras. Somos desnorteados por algumas rajadas de luzes, postes, carros. No Branco Sai Preto Fica vemos isso em todos os momentos, e os atores internalizam a história. O Marquim do Tropa e o Cláudio Shokito moraram nessas casas acreditando nessas sensações, com Queirós filmando os processos deles, criando um naturalismo que se aproxima do documental. Aí o fantástico, gente do futuro tentando consertar a violência policial que ainda está acontecendo... E as coisas não se resolvem. Então os personagens do filme içam o foguete que acaba por destruir o Congresso, a resolução do problema. Todos os conflitos resolvidos, e Dimas Cravalanças no meio dos resquícios. Ele também aponta a mão como uma arma e atira, e dá um som especial. Há mais poder no gesto de atirar do que presenciar a arma física.

Branco Sai, Preto Fica
G: É a etnografia da ficção, Dilmar acredita no futuro distópico e vê os inimigos ali, os agentes do mal. O Adirley fala em acreditar tanto no que você está fazendo a ponto de virar real. É uma escolha diametralmente oposta a uma noção do cinema moderno atual, que é o distanciamento de Brecht , aquele olhar distanciado do filme, dizer por si só que é um filme.

Branco Sai, Preto Fica
O brasileiro tem o potencial de acreditar na ficção científica porque as arquiteturas das metrópoles comunicam uma ideia assim. São Paulo é um apartheid também, uma distopia. A arquitetura, aquele banco de concreto feito com curvas, sabe? É para o mendigo não deitar. As vitrines de lojas tem umas calçadinhas, onde tem umas estacas, que é para as pessoas não se sentarem, não descansarem. A catraca é uma distopia, a USP é uma distopia. É o que a gente vive e, às vezes, não percebe.
O espaço negado é visível também no futebol. Adirley já foi jogador de futebol por anos, e ele quis mostrar esse lado do futebol fora do Globo Esporte, que é essa parte da grana, dos famosos, do Neymar, do Barcelona, do PSG. E o futebol do Brasil não é isso, isso é 1%. 99% são os caras dando duro na quarta divisão, ganhando pouco, sem estrutura, pegando uniforme emprestado, treinando em vários lugares diferentes. Acho muito forte essa questão sendo tratado no curta Meu Nome é Maninho, que é sobre um jogador de futebol chamado Maninho e sua relação com a Copa do Mundo de 2014, ele olhando o estádio do lado de fora. Ele não entra no estádio. Está ao redor do ambiente como um vendedor ambulante, ele queria estar lá dentro e não está. Um estádio que custou milhões de reais é um espaço negado para todo mundo.
Abrindo outro parênteses, o futebol é maravilhoso. No Cinema Novo, tem o filme Garrincha, Alegria do Povo, do Joaquim Pedro, com a ideia de retratar o futebol como “alienação das massas”. E não é isso, futebol é a dança dos corpos, como você vê nos filmes de Adirley, é a diversão do trabalhador. Quando não tá trabalhando, o operário bebe um pouco e vai jogar com os amigos.

Dias de Greve
U: Como no Dias de Greve, eles se juntam, pegam um Cantinho da Serra e vão jogar futebol no campo de terra. Fica evidente que a greve deles faz parte do dia-a-dia deles. Acompanhamos eles indo para casa, indo para serralheria... Um deles abre a geladeira e se depara com a falta de alimentos e a mulher pergunta se houve algum retorno da greve, e a resposta é negativa. O dono da serralheria fala em dar “alforria” para um desses operários. É a questão de precisar de só um dinheiro a mais para ter uma vida mais tranquila, mas ficamos sem resposta. Dá a entender, quando eles encostam em um muro no final, que eles foram demitidos.
Adirley Queirós repetiria essa discussão da briga com o patrão no Fora de Campo. Maninho trata do futebol como trabalho. Esse é o mais “correto” dos filmes do Adirley, mas esse interesse nas pessoas contando histórias e falando de sonhos frustrados me toca. Maninho não liga para time, ele trata o futebol como trabalho, sua relação com a família e memória.
Tem também as famigeradas cenas de vestiário. Tem uma frase que ele falou na conversa: "se você acha que cinema é foda, imagina vestiário de futebol". Uma cena que eu gosto é quando o time perde o jogo e os atletas brigam entre si. Aos poucos os palavrões vão se silenciando e todos se reúnem numa roda para realizar uma oração, junto com o técnico.
Desses vizinhos e amigos da Ceilândia, um deles é o Maninho. Poxa, ele foi um astro do Gama, um time brasiliense, time grande de Brasília, e olha que o futebol de Brasília é pequeno. Fora do eixo Rio-São Paulo. O que são esses times grandes do país? São só 20. O Maninho se torna um desses personagens nesse curta. Ele vira o protagonista. A forma como é montado e filmado, é como os filmes de ficção dele.
O Meu nome é Maninho funciona como uma continuação do Fora de Campo. Eu falo de “continuação” toda hora por causa da política do autor, é evidente que essa escolha de temas leva a um aprofundamento no filme seguinte. Não é só gostar de futebol, é como alinhar o futebol a um filme, como alinhar o rap a um filme, alinhar a Ceilândia a um filme.
Eu não gosto de colocar os rótulos do Bill Nichols (autor de Introdução ao Documentário, clássico dos estudos do gênero). Tenho imenso respeito por ele. Ele classifica o "documentário clássico", "documentário poético"... O Adirley oscila entre o observativo, o reflexivo e o poético. Há muita poesia, por exemplo, na forma pela qual o carro da Polícia Militar passa ao lado da gente em Meu Nome é Maninho. O carro da PM em perspectiva, aumentando de tamanho, parece até a chegada do trem dos Lumiére, quase atropelando a gente. Eu acho que a polícia é um dos rivais do Adirley.
G: A polícia é o Estado, né? Na mais brutal forma.
U: A forma de proteger o Estado... Ele mostra o Maninho no mesmo campo de futebol do Dias de Greve dando uma aula para crianças que querem ser jogadores.
Muitos falavam (em 2014), principalmente pessoas de esquerda que eu conheço, chamavam os que eram contra a Copa de conservadores e reacionários, sempre relacionando com o PT, que governava o país naquele tempo. Realmente, dá uma certa nostalgia, todo mundo comprando e vendendo artigos relacionados ao Mundial... Enquanto isso, há a falta de reconhecimento do jogador de times pequenos. A História não mostra todo mundo, não é possível que as classes populares sejam reduzidas. Esse filme é um outro grito. O Adirley grita nos filmes dele, assim como os cantores de rap.
G: É um grito silencioso, um grito arrastado, da imobilidade. Mas mesmo assim é um grito, porque quebra o código. Quebra o código do Estado de alguma maneira, balança o algoritmo.
Eu queria fazer uma reflexão sobre o futebol, uma coisa muito cara ao Adirley. Ele falou na palestra dele que o César Maluco, que jogou no Palmeiras, é seu ídolo. Ele diz que "tem que ser maluco como ele" e que "o futebol é a coisa mais linda do mundo". O futebol tem essa liberdade, é uma rede horizontal de solidariedade, é um código da periferia. Um código do povo brasileiro, povo sofrido, alegre. Tanto que você vê o futebol-arte que os europeus admiram daqui: o drible, a malandragem, os lances bonitos... E isso está acabando. Esses esquemas cada vez mais defensivos e certinhos, esse futebol das arenas elitizadas e ingressos caros. O capital é um código, uma linguagem, que está se enraizando cada vez mais em todas as redes, todos os territórios. O território do futebol é um deles, sendo dominado pelas televisões, pelo capital aberto, o marketing, pelos milhões que ele gira. Eu acho que essa questão do Estado é muito importante. O Estado é linguagem, cinema é linguagem. Às vezes essas linguagens podem se relacionar. Podem ir contra isso também.
Sobre o Era Uma Vez Brasília vou ser sincero, eu não entendi. Eu acho que talvez no futuro eu possa entender o Era uma vez Brasília. O Dias de Greve, por exemplo, lançado em 2009, eu não entenderia se assistisse naquela época. Eu entendo agora. Eu vejo no Dias de Greve a síntese dos anos Lula. Esse curta mostra um estado de tensão das relações sociais. O Dias de greve possui alguns elementos muito interessantes. Um deles é como o filme é lacônico, há uma incomunicabilidade muito grande. Operários silenciosos, não sabem o que falar, para onde ir, parece até que não sabem o que sentem.
Há essa tensão constante, sem ter para onde ir. Uma melancolia. Alguns caras não aceitam a greve, revelando uma despolitização. Eu acho que o Adirley faz uma crítica ao governo. Uma crítica à esquerda pela esquerda. O governo do PT não criou um imaginário alternativo aos códigos do Estado, ele usou o código do Estado para fazer o que queria. Mudou a cor, mas as estruturas continuam as mesmas. Isso gera tensão, e a gente sabe para onde essas tensões nos levaram agora.
No Dias de Greve, há uma cena que mostra o cara andando com a bíblia, é a presença da igreja evangélica nas periferias. Isso é latente, a gente sabe o poder disso e para onde isso nos levou. O lugar do trabalhador hoje não é o sindicato, é a igreja. Ele vai beber e vai pra igreja. Eu acho que isso é uma crítica muito forte. No A Cidade É Uma Só? tem aquela cena da carreata da Dilma indo colher votos na Ceilândia, o cara caminhando no sentido contrário.
U: Parece que é por acaso a chegada dessa carreata, mas é justamente o contrário, o Adirley e a equipe planejaram tudo. A carreta ia para a Ceilândia porque são cerca de 500 mil pessoas morando ali.
G: É muito voto.
U: Uma base eleitoral farta. Ainda mais casando com uma ideia do coletivo, a qual o PT defende.
G: E todas as raposas estavam lá em cima do carro de som. O Centrão, todo mundo com quem o PT se aliou estavam lá. E derrubaram a Dilma depois, né? O Estado tava ali. Essa carreata parece a polícia. Ambos são Estado. O mesmo código.
U: Todo mundo que derrubou a Dilma tava lá. O Temer, o Cunha. A própria questão da conciliação de classes, que acabou não sendo real. E esse cenário caótico do impeachment foi muito explorado no Era Uma Vez Brasília. Eu também não entendi esse filme, mas ele mostra mais Brasília que o Branco Sai Preto fica. Branco Sai tem muitas ilustrações, ao passo que Era Uma Vez tem um certo plano que chega a durar quase 7 minutos. São as manifestações políticas ocorrendo, mas nada é claro, ouvimos somente as vozes das pessoas gritando ao longe, como numa torcida. O som é muito bem trabalhado. Vira uma ficção científica estilo Carpenter, vira um Fuga de Los Angeles. Aparece o helicóptero com a lanterna acima do Marquim, que está armado de escudo, armadura, e máscara de ferreiro. Um lado bem caótico. Bem Mad Max. O Adirley é fascinado por Mad Max.

Era Uma Vez Brasília
Tem as falas mentirosas do Centrão discursando na sessão do golpe. Eu esperava o clichê do Bolsonaro, mas não teve isso no áudio. O Estado tá aí de diversas maneiras.
G: O Bolsonaro é passageiro.
U: É passageiro, nem é mencionado. Muitas vezes a gente "prevê o futuro dos filmes olhando a realidade", como Adirley mencionou na palestra. Se a gente filmar seis meses um plano aberto na metrópole ou na periferia, a gente vai saber o futuro. É um experimento bizarro, mas eu acho que a gente deve se levar a fazer esse exercício para buscar essas diferenças. O que tem antes e o depois, e porque tá diferente.
Retornando a esse filme. Eu achei do caralho. É muito arrastado. A base de segurança dos personagens é uma passarela normal, e tem um ar totalmente futurista. De repente corta para o viajante do tempo dentro de um carro cheio de bugigangas e pôsteres de JK. Nós o vemos fritando um bife, mas nunca vemos o exterior. A equipe toda ficou muito tempo nessa cena, filmando esse processo. Aí do nada: BUM! Cai o carro do céu, e tudo fica mais surreal: mais pessoas se escondendo sob essas máscaras, armando-se, com a certeza de que vai ter uma revolta. Achei assustador.
G: No Branco sai teve a revolta. No Era uma vez vai ter a revolta. Vai ter, vai ter...
U: Tem uma cena de ação, aquela com todo mundo estilizado, os lutadores intergalácticos da Ceilândia prontos para brigar. E a voz é o Marquim do Tropa, um “líder” dos mascarados. A gente não tem resposta de nada. O que vai acontecer? Personagens escondidos sob sombras, cantores de rap agora em off-screen - isso nunca havia acontecido num filme do Adirley. Eles são menos a voz e mais a válvula de escape. E a única cena que se assemelha a uma resposta que é o final. Ouvimos os helicópteros, parece que estão chegando. O viajante anda de um lado e para o outro junto com a agente e o Marquim. Os três param de olhar os cantos e passam a olhar si mesmos. Depois olham para a gente. E agora?
G: Quando eles ouvem os discursos dos deputados, o pronunciamento do Temer... Parece um registro pré-histórico, ancestral.
U: Exatamente.
G: Tudo aquilo que rolou, o golpe, é tudo passageiro. O Estado venceu. Ou vai vencer. Não sabemos, a imobilidade está lá, nada acontece. Tem o chamado à revolta, mas cadê a revolta? É um eterno vir-a-ser. Provavelmente a gente não entendeu o filme, mas vai entender. Não hoje. Justamente porque Era Uma Vez Brasília é o futuro. O futuro do Brasil tá ali, naqueles planos.
U: Tem uma perseguição a um inimigo, que a gente não encontra. O Estado aparece nessa voz, no helicóptero, no carro do policial. As vozes de Dilma, Temer e os deputados são personagens desse filme. Há prisioneiros levados nos metrôs para um destino que não vemos. Tudo barulhento, confuso, de ambiências opressivas. É aí que devemos aprofundar essa questão do Estado.
O Adirley fala que quando vemos histórias a gente acredita nelas. Esse vínculo especial que incentiva ele a filmar, contar histórias... E a gente a se envolver, né?
A etnografia da ficção, vejamos, é uma teorização: ele repensa a mise-en-scène enquanto filma, uma teoria que pratica fazendo filme.
Ele teoriza, também, a forma de falar do Estado no Cinema. O Estado é mais presente nesse filme. Adirley falou uns vinte minutos disso e poderia tomar mais tempo: Estado não é governo. Aquilo que direita e esquerda pregam é em relação às políticas que o governo aplica. Estado não fica tão claro o que é. Não fica claro se é o poder ou se é a manifestação de poder em si. O Estado, para o Adirley, parece essa onipresença que cria os poderes. O Estado corporifica poderes e faz corporificar. Indo nesse caminho, ele diz que o governo deve ser politicamente correto, pois defende políticas públicas...
G: Inclusive, o Estado deve induzir o cinema como política pública, mas não o contrário. A arte deve ser contra o Estado, pois este é inimigo.
U: Exatamente, a arte deve atacar o Estado. O cinema deve ser politicamente incorreto nesse sentido: a relação do plano, porque um plano se liga a outro... Isso é a linguagem do cinema. Agora, o cinema tem a força de criar imagens e simbolismos.
Nos filmes, você deve lutar contra o Estado, mas sem usar uma linguagem que o Estado conheça, pois o Estado vai te conhecer, vai saber a sua comunicação e vai te usar. Vai te possuir. Isso é ficção científica!
Ele comenta que, em Blade Runner, os códigos, as informações, os robôs, são o Estado. O Estado está onipresente. Isso me lembra John Lilly. O Estado, para o John Lilly, seria esse sistema que daria alimento e segurança para a humanidade num dado momento do futuro, e a humanidade seria os animais do zoológico desse sistema.
O Estado corporifica o governo como sua forma de poder para manejar certos mecanismos, como a publicidade, e manter o modo de vida, por exemplo. Parece muito o Eles Vivem (1988, dir: John Carpenter). Pensei nesse filme em todo o momento dessas falas do Adirley. John Nada (protagonista de Eles Vivem) põe os óculos e vê o que está por trás da publicidade e das revistas. O que não seria o Estado senão essas mensagens nas quais você deve acreditar para continuar a comer, continuar a dormir 8 horas por dia, continuar a trabalhar, continuar a assistir televisão? Apenas para se manter nesse sistema. O Estado para o Carpenter seriam as mensagens subliminares e os monstros misteriosos que se escondem sob a forma das pessoas. Tem um pouco de Foucault nisso, como você havia comentado, Gabriel.
G: Microrrelações de poder... A todo momento e em todo lugar.
U: Sim. O Estado é essa onipresença, para quem você deve cumprir. O cinema deve combater o Estado. Adirley diz que filmes que usam a linguagem conivente, fácil, são a favor do Estado. Entregam mais do que deviam para o Estado. Facilitam o processo. Parece que devemos ficar atentos às nossas atitudes para não sermos domados. A nossa autoridade quem dita é a gente, um princípio anárquico.
O Estado vai se adaptar a uma linguagem normalizante. O cinema, segundo o Adirley, deve chocar, confundir, para que possa atacar as fragilidades do Estado. Eu vejo essa relação anti-Estado na forma com que ele arrasta o filme, indo para lá e pra cá. No A Cidade É Uma Só? eu vejo muito isso, nessa mistura de ficção e documentário. No Branco Sai Preto Fica, há a promessa de trama elaborada... mas a gente não vê essa trama elaborada. Eu pelo menos entendi isso.
A gente deve sempre, concordando com o governo ou não, manter uma autoridade contra o Estado. Isso me fez inspirar! Passei a observar quais filmes são críticos nesse sentido. É uma coisa que vamos pensar daqui para frente.
G: O Adirley diz que o Estado é uma retórica, que sustenta uma certa materialidade da vida. Hoje, é a materialidade do capital. Por isso, todo Estado é fascista. O poder é violento. A gente não vai conhecer o inimigo. Não podemos nem tentar falar a língua dele. A gente tem que tirá-lo do contexto, tem que usar nosso código.
Eu gostaria de trazer uma questão. O Adirley disse que leu muito Camus, Sartre e Fanon. Frantz Fanon foi um cara maravilhoso. Ele falava dessa lógica de poder na qual o capitalismo opera, na zona do “não-ser”, uma zona de exclusão. O colonizado é excluído não somente juridicamente falando, como também há um mecanismo psicológico de dominação. Ele cria a justificativa, o código. O código que exclui a periferia, que exclui a pessoa preta. Códigos criados não por acaso. Para manter o sistema.
U: Códigos disseminados há muito tempo, inclusive por meio de linguagem publicitária. Eu vejo Eles Vivem nisso. A questão daquela propaganda do "Vai, Verão", da Itaipava. Eu fico muito fatalista quando eu vejo como essas coisas operam. A publicidade sabe muito bem fazer isso, de trabalhar com mensagens subliminares.
E eu vejo muitos filmes comuns, sabe? Porra, me desculpe, mas esses filmes de super-herói atuais são totalmente pró-Estado, uma conivência total. Eles vão se adaptando ao longo do tempo, aceitando as bandeiras Black Lives Matter, LGBTQIA+, feminismo, que por muito tempo as indústrias rejeitaram, para justamente vestir o lobo com pele de cordeiro, porque vende. Tornou-se normalizante demais.
G: Trouxe o código, né? Absorveu.
U: Absorveu o código.
G: Falou a língua dele. Não teve emancipação.
U: Como articular essa linguagem que dribla o Estado sem ser explicativo? Por isso que Adirley fala: Democracia em Vertigem é um filme evidente que o Estado usa a seu favor…
Vamos ao cinema, à linguagem cinematográfica desse filme. Como é essa linguagem, que é, suponhamos, pró-Estado? Planos simplificados... O drone para impressionar… Os diálogos... "Eu devia ter feito mais", "o governo deu migalhas para o povo, mas esse foi o melhor governo porque pelo menos recebemos as migalhas"...
G: “Eu tenho saudades da democracia"...
U: É, essa linguagem... Não digo que a Petra na verdade seja nossa inimiga... É a linguagem do filme dela, como ela decupa, como ela faz a mise-en-scène. É disso que eu tô falando. É uma linguagem que foi aceita pelo Estado. Aí, a partir de agora, vai ser fácil para o Estado resistir.
G: Foi pro Oscar. Oscar é Estado.
U: Eu acho que o Oscar é Estado. Ele é tão mais forte que a questão de governo, que as criações do poder se manifestam tanto de forma política quanto por meio das corporações... Essa sistematização, essa forma de controlar. Parece até um Deus ruim. Finge dar o bem, mas manipula as pessoas.
G: Sim. Eu reflito, por exemplo, sobre esse mercado que está mais "aberto" a questões progressistas. Parece mais uma absorção das pautas. Mudar um pouco o algoritmo para continuar tendo o algoritmo. Continuar com essas microrrelações de poder. É um cinema Joe Biden.
U: É, e não é teoria da conspiração, é ver como se comporta. Uma filosofia cinematográfica, que fala sobre comportamento social, que reflete sobre a gente, eu e você... Porra! Tem vários filmes pró-Estado que eu adoro. Eu assisto várias séries na Netflix e no Amazon O que seria essa forma de continuar, de controlar a atenção do espectador, senão uma forma de Estado?
G: Netflix é algoritmo puro.
U: Para mim, a forma que mais entendo como Estado é o algoritmo. Parece que entende o que você fala, o que você ouve. Às vezes é o próprio celular.
G: Ele te dá conforto, né?
U: Manipula da forma ainda mais fácil. É preciso buscar a renovação da linguagem. Desafiar. Atacar. De modo que o Estado não entenda, criando uma armadilha. Não explicar.
Epifania.
G: O Adirley fala que o jornalismo busca a verdade, eliminando a contradição. Só que o mundo não é ausente de contradição. O cinema não é jornalismo, o cinema é cinema, um filme é um filme. Um filme não cria verdades, um filme cria imagens.
A imagem deve provocar. Se houver consenso, virou Estado. O Estado é amizade. Ele diz que enfrentar o inimigo é fácil, difícil é enfrentar o amigo. O Estado fala o mesmo código que você, virou seu amigo. E é difícil enfrentar o amigo.
Isso é sintomático do cinema, da vida de hoje...
Acho que a coisa mais materialmente simbólica que representa isso é a eleição americana. De um lado, um "anti-establishment" fascista, contra um establishment incorporador de códigos. É a mesma coisa que o outro, praticamente.
U: Eu nem sei mais o que falar...
G: Nem eu.
O que dá para concluir é que um filme é visceral, é muito duro. Ele fala da vida, da sua vida, da sua "verdade".
U: A sua realidade.
G: A sua realidade. Fazer um filme é doloroso. Não é fácil fazer filme, mas é um prazer.
U: A gente tem que errar mesmo, um dia a gente vai acertar. Nem sempre o filme vai ser bom, se não for, a gente faz outro. A gente vai experimentando. Tem coisa mais livre do que a gente reunir o nosso grupo, os nossos amigos, e fazer um filme?
G: Se enxergar na tela. Enxergar o outro na tela... É uma catarse sem comparação. Quebra o algoritmo. Uma quebra bem grande. Ver o seu povo na tela.
Não sei mais o que falar, não...

Branco Sai, Preto Fica
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